quinta-feira

Homossexualidade - O ódio à diferença

Além-mar
Maio 2006

Ana Glória Lucas


O ódio à diferença


Um pouco por todo o mundo, homossexuais são assassinados, presos, maltratados, discriminados. A homofobia é uma manifestação de ódio à diferença, mas sobretudo um atentado à dignidade da pessoa, uma violação da Declaração Universal dos Direitos Humanos e um desrespeito pelo Evangelho. Onde Jesus diz claramente, sem sés nem mas: «Ama o próximo como a ti mesmo.»


«Agarrámos nele e assestámos-lhe uns valentes golpes, mas ele continuava a cantar. [...] Passámos-lhe uma rasteira, ele caiu pesadamente e lançou um imenso vómito de cerveja. Era algo de repugnante, por isso cada um de nós lhe deu um pontapé e então já era sangue, não canções nem vómito, o que lhe saía da velha boca nojenta. Depois, seguimos o nosso caminho.»


In “Uma Laranja Mecânica”



O inglês Anthony Burgess escreveu o romance «Uma Laranja Mecânica» em 1962 e Stanley Kubrick imortalizou-o no cinema em 1971. Burgess situou-o então num futuro não muito distante e nele conta a história de um grupo de adolescentes que se entregam a actos de violência gratuita, forma por eles escolhida para se insurgirem contra a sociedade conformista em que viviam. Nesta cena, o alvo da violência é um velho alcoólico com quem os quatro adolescentes se cruzam nas suas deambulações nocturnas. E é quase impossível não pensar que o que para Burgess era futuro para nós é já presente, quando lemos ou ouvimos notícias como a da morte de Gisberta às mãos de um grupo de adolescentes com idades compreendidas entre os 13 e os 16 anos, no Porto. Gisberta, um transexual brasileiro de 46 anos, sem-abrigo, toxicodependente e portador do vírus da sida, foi alvo de espancamento, sevícias sexuais e, por fim, lançado a um poço, onde o seu corpo só foi encontrado no dia seguinte.


«As minorias são em geral alvos fáceis para actos de humilhação ou agressão», afirmou à Além-Mar Cláudia Pedra, directora da Secção Portuguesa da Amnistia Internacional. «Pior quando se juntam várias minorias numa só pessoa, pois isso gera várias discriminações ao mesmo tempo. Neste caso, era um indivíduo sem-abrigo, um travesti e ninguém queria saber nada dele, só quiseram saber quando morreu. E aquelas crianças, que certamente já tinham passado por muitas coisas antes para chegarem àquele ponto, pensavam que o que estavam a fazer não era errado.»



Morte, prisão e tortura

A homossexualidade sempre existiu. Para não irmos mais longe, era prática aceite e corrente na Grécia Antiga. Hoje em dia, a homossexualidade é mais ou menos tolerada consoante o tipo de sociedade onde se insere, o que dita os actos de discriminação e mesmo de abusos contra os cidadãos unicamente por causa da sua orientação sexual.


«Os países do Sul são piores do que os países do Norte relativamente à discriminação dos homossexuais», referiu Cláudia Pedra. «Nos países onde existe a cultura do “macho”, é especialmente perigoso para uma pessoa assumir-se e tentar viver sem ser discriminado. Nos países onde a sexualidade de uma forma geral é encarada mais livremente, não existem tantas situações de discriminação. Mas é difícil encontrar um país onde não haja nenhuma.»


Segundo a Wikipédia – a tal «enciclopédia livre e gratuita, feita por pessoas como você» na Internet (o que significa que deve haver alguma prudência em relação aos dados apresentados) – existem ainda países que punem a homossexualidade com a pena de morte. São eles o Afeganistão, a Arábia Saudita, o Iémen, o Irão e o Sudão. Um número considerável de países pune a homossexualidade com prisão, alguns (sobretudo Estados muçulmanos) com castigos físicos e há ainda aqueles onde uma orientação sexual por indivíduos do mesmo sexo é reprimida pelas entidades oficiais. São estes, ainda de acordo com a mesma fonte, o Burundi, Cuba e o Egipto.


Em Cuba, onde «maricón» continua a ser um insulto merecedor de um sinal sonoro quando é proferido na rádio ou televisão, a perseguição aos homossexuais começou nos anos 60 e 70, com detenções maciças e o transporte para as chamadas Unidades Militares de Ajuda à Produção (UMAP), onde se supunha que os trabalhos agrícolas que os obrigavam a executar os «transformariam em homens». Essas unidades já não existem e o Código Penal aprovado em 1979 descriminaliza a homossexualidade. No entanto, os homossexuais que causem «escândalo público» podem ainda ser punidos com penas que vão até aos 12 meses de prisão.


No México, onde o machismo continua a influenciar as atitudes públicas ou privadas contra os homossexuais – herança em parte de uma cultura azteca que executava e seviciava os homossexuais, ao mesmo tempo que oferecia sacrifícios humanos aos deuses –, os homens efeminados são particularmente vulneráveis, bem como os travestis. Os actos de violência contra este grupo populacional são frequentes e têm muitas vezes as marcas das próprias autoridades. Um exemplo bastas vezes referido é o dos 15 travestis assassinados entre Junho de 1991 e Janeiro de 1993, depois de terem ousado desafiar uma lei estadual de Chiapas, de 1990, proibindo que os homens se vestissem de mulheres em nome da «saúde pública». A maioria dos homicídios foi levada a cabo com armas de calibre reservado ao exército e à polícia federal e estadual.


O México é o segundo país do mundo com mais assassínios de gays por ano, logo depois do Brasil: 35, de acordo com os números oficiais; três vezes mais, segundo outras fontes. No Brasil, de acordo com Luís Mott, antropólogo e presidente do Grupo Gay da Baía, a homofobia é uma verdadeira «epidemia nacional» e «cada três dias um homossexual é barbaramente assassinado». De resto, um estudo realizado pela UNESCO entre os jovens de Brasília permitiu concluir que apenas 12 por cento consideravam crime humilhar os travestis, prostitutas e homossexuais.


Um tabu «africano»

Também na África a homossexualidade é em grande medida praticada às escondidas. «Tanto a norte como a sul do Sara, a lei e mais ainda a sociedade tornaram-se amplamente hostis a práticas sexuais que a tradição por vezes admite», escrevia a revista Jeune Afrique de Setembro último, num trabalho sobre o que é «Ser gay em África».


Em Março último, dois estudantes dos Camarões foram condenados a um ano de prisão depois de terem admitido publicamente serem amantes. No Uganda, activistas dos direitos das minorias sexuais do país vêem as suas casas ser alvo de buscas policiais sem mandado. E, no Zimbabué, o presidente Robert Mugabe garante que «a homossexualidade é uma tara dos brancos». Isto num país cujo primeiro presidente, o ministro metodista Canaan Banana (1980-87), viria a ser condenado em 1999 por práticas sexuais com outros homens, alguns deles elementos da sua guarda pessoal.


Na África negra, a excepção parece ser a África do Sul, onde os casamentos entre pessoas do mesmo sexo foram recentemente admitidos. Em Dezembro último, o Tribunal Constitucional ordenou que a definição de casamento deixe de ser uma «união entre um homem e uma mulher» para passar a ser uma «união entre duas pessoas». A África do Sul tornou-se assim o primeiro país em África e o quinto em todo o mundo a legalizar os casamentos entre pessoas do mesmo sexo. Também na África árabe a homossexualidade é reprimida. Quando não é especificamente proibida por lei, os gays podem ser perseguidos pela justiça por «deboche» ou «prostituição», como no caso do Egipto, o que pode ser punido com três anos de prisão. Muitas vezes são as próprias famílias que não aceitam e expulsam de casa o jovem homossexual que, uma vez na rua, acaba no engate e na prostituição.




Discriminação e humilhação

A Declaração Universal dos Direitos Humanos não faz referências específicas à homossexualidade. Mas garante que «todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos» e que «toda a gente tem direito a todos os direitos e liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer tipo, seja ela de raça, sexo, língua, religião, política ou de opinião, de origem nacional ou social, bens, nascimento ou outro estatuto». Além do mais, «toda a gente tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal».


É com base nesta Declaração que as organizações que defendem os direitos dos homossexuais desenvolvem o seu trabalho. A Amnistia Internacional, por exemplo, considera que, tal como a cor, o sexo ou a religião, as preferências sexuais de uma pessoa fazem parte integrante e fundamental da sua identidade. «A nossa abordagem à comunidade homossexual assenta no facto de serem uma minoria que tem sido especialmente vítima de discriminação no que se refere aos direitos humanos. Em muitos países do mundo, os gays são assassinados, presos e torturados sem terem cometido qualquer crime, unicamente por serem gays», afirmou a mesma responsável da Secção Portuguesa da Amnistia Internacional. «Por isso, para nós, são prisioneiros de consciência.»


Para Cláudia Pedra, os actos de humilhação e agressão aos homossexuais têm a ver «com os estereótipos da sociedade» e também com o facto de a «comunidade homossexual viver há muito tempo escondida. Há pouco contacto com o público em geral, que tem tendência para rejeitar e ter medo do que é diferente. A ignorância e o preconceito assumem por vezes formas de violência». A discriminação dos homossexuais é frequente no mundo do trabalho: «Se um gay procurar emprego como engenheiro, por exemplo, tem grandes hipóteses de não ser aceite. Claro que a justificação dada pelo patrão nunca será a orientação sexual do indivíduo.»


E as agressões e humilhações podem ser muito variadas. Não são apenas os espancamentos. As anedotas que se contam, as imitações de gestos comuns em certo tipo de gays, os insultos, até mesmo um olhar podem fazer um homossexual sentir-se mal. Há quem se suicide por causa disso. Há quem passe a vida a mentir, fechado num mundo de angústia e solidão. O respeito pela dignidade da pessoa humana, que para muitos já é imenso, é algo que fica muito aquém do Evangelho. Que pura e simplesmente nos obriga a um mandamento novo – o Amor.