quinta-feira

A violência no mundo moderno - V - Friedrich Hacker

Friedrich Hacker
Agressividade – a violência do mundo moderno
Lisboa, Livraria Bertrand, 1972
(excertos)



CALLEY: «TU MATARÁS»

É mais temido o reconhecimento da derrota militar do que a própria derrota em si. Perder é desagradável, mas mais desagradável é, ainda, analisar as causas do fracasso e a questão de se o empreendimento era legítimo, se as autoridades que o planificaram eram legítimas e se os responsáveis também se encontravam na posse de uma legitimidade. Não são os desejos bélicos da nação nem motivos de ordem económica os obstáculos ao regresso imediato dos americanos do Vietname; o verdadeiro impedimento reside no medo das consequências que poderia ter uma brusca revisão dos conceitos morais americanos, estabelecidos segundo os hábitos de ordem económica, ideológica e cultural. Não estamos interessados numa imagem imponente aos olhos do mundo, mas nos nossos sentimentos, na nossa identidade pessoal, nos nossos métodos de legitimidade, que dentro de uma simplificação imaginam sempre a razão do lado do vencedor, exigindo, portanto, uma vitória para vincar bem essa razão. No longínquo Vietname, os americanos não combatem, não matam nem morrem para ganhar terreno, para aniquilar inimigos ou conquistar a glória, mas para preservarem a sua imagem no mundo e a legitimidade aos seus próprios olhos. O tenente Calley aparece como um bravo e obediente guerreiro. Portanto, todos lhe manifestam o seu sentimento de solidariedade. Ele torna-se o símbolo da unidade nacional. Esta unidade procura e encontra, aliás, bodes expiatórios num sentido diametralmente oposto e sabe-se de acordo com esta polarização mental.

A simplificação e violência internacionais prosseguem, assim, como tantas vezes no passado, a quimera de uma precária união nacional; falta-lhe, talvez, a ocasião de discutir as causas nacionais e internacionais dos conflitos, a fim de evitar outros conflitos futuros. Em troca do insignificante «prato de lentilhas» da nossa legitimação, não nos preocupamos com o direito da nossa autodeterminação, que assenta na autocrítica. Recusamo-nos a lutar pela emancipação. Falamos de fatalidade em lugar de atribuir culpas à nossa presunção.

Poucos dias após o julgamento de Calley, o presidente Nixon expressou num discurso televisionado a sua convicção inabalável de que os Americanos só lutam por objectivos idealistas. Uma vez mais, prometeu à nação acabar com a guerra do Vietname de acordo com o programa previsto. Seguidamente, contou um episódio comovedor ocorrido na atribuição de uma medalha póstuma. Quando a viúva de um herói do Vietname, morto no campo de batalha, recebeu a condecoração do valente militar, o filho deste, uma criança de quatro anos, fizera a continência militar. Eis o que comoveu o presidente e a nação, para quem a continência militar é algo de intocável. O facto nada tem de exclusivamente militar, pois que nos países condicionados pela brutalidade — todos o são — saudar constantemente alguém ou alguma coisa é uma ocupação essencial dos habitantes, que primeiro foi imposta, para depois adquirir feição de regularidade. Pelo gesto de submissão que a saudação militar representa, o oprimido vai até ao ponto de mostrar a sua solidariedade para com os opressores, sentindo-se habilitado, por sua vez, a oprimir outros em nome dele. Sente uma mistura característica de brutalidade e emoção que afasta todo o sentimento de culpabilidade ou responsabilidade individuais.

O que depois aconteceu ao tenente Calley pouco importa agora. Foi em vão que se tentou transformar a personagem, à maneira dos filmes simplistas e segundo as escalas morais e tradicionais, mas ela não se coaduna ao papel. Teria sido necessário um herói transbordante de virilidade, mas a sua figura é demasiado insignificante.