sexta-feira

Uma decisão importante - Judith Kerr


Quando, em 1933, os nazis sobem ao poder e começa a perseguição aos cidadãos judeus, os pais de Anna e Max consideram que o mais seguro será fugir. Neste excerto, Anna e Max vivem num hotel, na Suíça, onde travam amizade com Vrenelli e com Franz, os filhos dos donos, até ao dia em que chegam duas crianças alemãs. De início brincam todos juntos, mas essa situação não se prolonga por muito tempo.

Brincavam todos juntos à apanhada. Antes nunca tinha sido muito divertido, porque eles eram só quatro. (Trudi não contava, porque, como não conseguia correr depressa, era logo apanhada e depois gritava sempre). Mas as duas crianças alemãs eram muito velozes e, pela primeira vez, a brincadeira era mesmo emocionante. Vreneli acabara de apanhar o menino alemão e ele apanhou Anna, por isso agora era a vez da Anna apanhar alguém, e ela correu atrás da menina alemã. Elas corriam às voltas pelo pátio da hospedaria, aos ziguezagues, para trás e para a frente, pulando sobre as coisas, até que Anna julgou que estava quase a apanhá-la – mas uma senhora alta e magra, com uma expressão desagradável, barrou-lhe subitamente o caminho. A senhora apareceu tão de repente, como que saída do nada, que, por pouco, Anna não tinha tempo de parar e quase chocou com ela.
— Desculpe — disse Anna, mas a mulher não lhe respondeu.
— Siegfried! — chamou, com voz estridente. — Gudrun! Já disse que não quero que brinquem com estas crianças!
Agarrou a menina alemã e arrastou-a consigo. O menino seguiu-as, mas quando a mãe não estava a olhar, olhou para Anna, fez uma cara engraçada e acenou com as duas mãos, como que a pedir desculpa. Depois desapareceram os três no interior da hospedaria.
— Que mulher tão mal-encarada! — disse Vreneli.
— Ela deve pensar que nós somos mal-educados — disse Anna.
Tentaram continuar a brincar sem os meninos alemães, mas a brincadeira assim já não prestava. E acabou na confusão do costume, com Trudi em lágrimas, por ter sido apanhada.
Anna só voltou a ver os meninos alemães ao fim da tarde. Eles devem ter andado às compras em Zurique, porque cada um deles trazia um embrulho e a mãe trazia vários, grandes. Quando estavam quase a entrar na hospedaria, Anna pensou que aquela era a sua oportunidade de mostrar que não era mal-educada. Com um salto, passou-lhes à frente e abriu-lhes a porta.
Mas a senhora alemã não parecia estar, de todo, agradada.
— Gudrun! Siegfried! — disse ela, empurrando rapidamente os filhos para dentro. Depois, com um ar carrancudo e mantendo-se o mais afastada possível de Anna, comprimiu-se ela própria para passar. Foi difícil. Os embrulhos quase tapavam a entrada. Finalmente, ela lá entrou e desapareceu. «Sem sequer dizer obrigada», pensou Anna. «A senhora alemã é que é mal-educada!»
No dia seguinte, Anna e Max tinham planeado ir ao bosque com os meninos Zwirn, no segundo dia choveu e no terceiro dia foram com a mãe a Zurique para comprar meias – por isso não voltaram a ver os meninos alemães. Mas depois do pequeno-almoço, na manhã seguinte, quando Anna e Max saíram para o pátio, lá estavam eles outra vez a brincar com os meninos Zwirn. A Anna correu logo em direcção a eles.
— Vamos brincar à apanhada? — perguntou.
— Não — respondeu Vreneli, meio-corada. — E tu nem sequer podes brincar.
Anna ficou tão admirada que, por alguns momentos, não conseguiu pensar em nada para dizer. Será que Vreneli tinha outra vez o menino ruivo na cabeça? Mas ela já não o via há tanto tempo...
— Porque é que a Anna não pode brincar? — perguntou Max. Franz estava tão envergonhado como a irmã.
— Nenhum de vocês pode — respondeu e, apontando para os meninos alemães, acrescentou: — Eles dizem que não podem brincar convosco.
Pelos vistos, não só tinham sido proibidos de brincar com eles, como também de lhes falar, porque o menino parecia querer dizer alguma coisa, mas acabou por fazer apenas a mesma cara engraçada, com ar de quem pede desculpa, e encolheu os ombros.
Anna e Max olharam um para o outro. Nunca se tinham visto numa situação daquelas. Então Trudi, que tinha estado à escuta, começou a cantarolar:
— A Anna e o Max não brincam! A Anna e o Max não brincam!
— Oh! Cala-te! — disse Franz. — Vamos! — e começou a correr com Vreneli em direcção ao lago, com os meninos alemães atrás deles. Durante um momento Trudi ficou surpreendida. Depois cantarolou um último e desafiador «A Anna e o Max não brincam!» e, com as suas curtas perninhas, rompeu em correria atrás deles.
Atrás, ficaram especados Anna e Max.
— Porque é que eles não podem brincar connosco? — perguntou Anna, mas Max também não sabia. Parecia nada mais haver a fazer do que voltar para a sala de jantar, onde o pai e a mãe ainda acabavam de tomar o pequeno-
¬-almoço.
— Pensei que estivésseis a brincar com o Franz e a Vreneli — disse a mãe.
Max explicou o que sucedera.
— Isso é muito estranho — disse a mãe.
— Talvez a mamã pudesse falar com a mãe deles — disse Anna. Ela acabara de reparar na senhora alemã e num homem, que certamente era o marido, sentados numa mesa ao canto.
— Com certeza que falo — disse a mãe.
Nesse preciso momento, a senhora alemã e o marido levantaram-se para sair da sala de jantar e a mãe de Max e de Anna foi ao encontro deles. Estavam muito longe para que Anna pudesse ouvir o que diziam, mas a mamã ainda só tinha dito algumas palavras quando a senhora alemã respondeu alguma coisa que a fez mãe corar de raiva. A senhora alemã disse mais qualquer coisa e fez tenções de ir embora, mas a mamã agarrou-lhe o braço.
— Ai não, não é! — gritou a mãe numa voz que ecoou por toda a sala. — Não é o fim, não senhora. — E rodou sobre os calcanhares, voltando para a mesa, enquanto a senhora alemã e o marido saíram, cabisbaixos.
— Toda a sala te ouviu — disse o pai zangado, quando a mãe se sentou. Ele odiava cenas.
— Ainda bem! — disse a mamã num tom tão alto que o papá sussurrou:
— Chiu! — e acenou para a acalmar.
Ter de falar baixo fez com que a raiva da mãe aumentasse ainda mais, a ponto de mal conseguir falar.
— Eles são nazis — disse ela por fim. — E proibiram os filhos deles de brincar com os nossos, porque os nossos são judeus — o tom da voz dela aumentava com a indignação. — E tu queres que eu fale baixo?! — gritou de tal modo, que uma velha senhora ainda a acabar de tomar o pequeno-almoço ficou tão assustada que quase entornou o café.
O pai cerrou os lábios e disse:
— Eu também jamais permitiria que a Anna e o Max brincassem com filhos de nazis. Por isso não vejo qualquer problema.
— Então, e Vreneli? E Franz? — perguntou Max — Isso significa que se eles brincam com os meninos alemães não podem brincar connosco?
— Eu acho que Franz e Vreneli terão de decidir quem são os amigos deles — disse o pai. — A neutralidade suíça é muito boa, mas pode ir longe demais — e levantou-se da mesa. — Agora sou eu quem vai falar com o pai deles.
Pouco depois, o pai voltou. Ele dissera ao senhor Zwirn que os seus filhos tinham de decidir se queriam brincar com Anna e Max ou com os visitantes alemães. Eles não podiam brincar com os dois. O pai pediu-lhes que não decidissem apressadamente, mas que lhe transmitissem a decisão nessa noite.
— Acho que nos vão escolher a nós — disse Max. — Afinal de contas, nós vamos continuar aqui depois de aqueles meninos se irem embora.
Mas foi difícil saber o que fazer com o resto do dia. Max foi para a beira do lago com a cana de pesca, minhocas e pedaços de pão. Anna não sabia o que havia de fazer. Por fim decidiu escrever um poema sobre uma avalanche que engolira uma cidade inteira, mas não se saiu muito bem. Quando chegou ao desenho ficou tão aborrecida com a ideia de ter de pintar tudo de branco, que desistiu de o fazer. Max, como de costume, não pescou qualquer peixe. A meio da tarde estavam os dois tão deprimidos que a mãe lhes deu meio-franco para irem comprar chocolates –apesar de já ter dito que eram demasiado caros.
No caminho da loja de doces para casa, viram Vreneli e Franz a falar com um ar muito sério à entrada da hospedaria e a seguir passaram por eles com uma expressão embaraçada, olhando em frente, o que os fez sentir pior do que nunca.
Então, Max voltou para a sua pescaria e Anna decidiu ir tomar banho para tentar salvar alguma coisa do dia. Flutuou de costas, coisa que aprendera muito recentemente, mas nem isso a animou. Parecia tudo tão absurdo. Porque é que ela e Max e os meninos Zwirn e os meninos alemães não podiam brincar todos juntos? Porque é que era preciso toda esta história das decisões e de tomar partidos?
De repente, ouviu-se um chape na água ao lado dela. Era Vreneli. As suas tranças compridas estavam atadas num totó no cimo da cabeça, para não se molharem, e o rosto comprido estava mais cor-de-rosa e mais preocupado que nunca.
— Desculpa por esta manhã — disse Vreneli sem fôlego. — Decidimos que preferimos brincar convosco, mesmo que isso signifique não podermos brincar com o Siegfried e a Gudrun.
Depois apareceu Franz na margem.
— Olá Max — gritou. — As minhocas estão a gostar do banho?
— Eu teria apanhado um peixe enorme agora mesmo, se tu não o tivesses espantado com o barulho que fizeste — disse Max, muito satisfeito mesmo assim.
Nessa noite, ao jantar, Anna viu os meninos alemães pela última vez.
Eles estavam sentados, muito direitos, com os pais na sala de jantar. A mãe falava com eles, pausada e insistentemente, e nem mesmo o menino se voltou para olhar para Anna e Max, uma única vez que fosse. No final da refeição, ele passou pela mesa deles, como se os não visse. Toda a família se foi embora na manhã seguinte.
— Lamento que tenhamos feito perder alguns clientes ao senhor Zwirn — disse o papá.
A mãe estava triunfante.
— É uma pena — disse Anna. — Tenho a certeza de que aquele menino gostava mesmo de nós.
Max abanou a cabeça.
— No fim, já não gostava de nós. Depois da a mãe ter falado com ele, ele deixou de gostar de nós.
«É verdade», pensou Anna. Ela imaginou o que o menino estaria a pensar agora, o que a mãe lhe teria dito acerca dela e de Max, e como seria ele quando crescesse.
Judith Kerr

Manuela Fonseca e outros (org.)
Lá longe, a paz
Porto, Edições Afrontamento, 2001




Texto retirado com autorização de Caminhos para a paz