quinta-feira

A violência no mundo moderno - VI - Friedrich Hacker

Friedrich Hacker
Agressividade – a violência do mundo moderno
Lisboa, Livraria Bertrand, 1972
(excertos)



CALLEY: «TU MATARÁS»

O debate continua, apesar de tudo ficar em aberto e a resolução imbuída de incertezas. Como compreender e aceitar a maior nação democrática do mundo de um ponto de vista psicológico e moral? Os defensores de Calley tinham afirmado que fora a guerra a causadora da transformação do tenente num robot hierárquico, executor de ordens desumanas que não tinham sido dadas expressamente, mas que podiam ser logicamente deduzidas da estratégia da guerra. Ele apenas se limitara a executar, à queima-roupa e servindo-se de uma pistola-metralhadora, o que, por métodos permitidos e oficiais e de forma consciente e sistemática, constituía o objectivo dos bombardeamentos quotidianos da artilharia e da aviação, ou seja, o aniquilamento da população civil, virtual e concretamente hostil. Não podia ser feita qualquer comparação com base noutras guerras entre povos cujos meios de defesa se equiparavam. Nesta guerra civil do Vietname opunham-se, por um lado, a nação mais industrializada do mundo, com todos os meios motorizados e químicos de aniquilamento, e, por outro lado, a selva e os seus habitantes. Por uma táctica adversa à da guerrilha, que, segundo a fórmula de Mão, está para os indígenas na mesma ambientação de que o peixe na água, seria necessário exterminar este oceano de população indígena. As opiniões políticas e militares concordavam neste ponto: o objectivo militar a atingir reside na população civil. O reconhecimento de que «o inimigo tem de perder o apoio popular» mediante infindos bombardeamentos de vastas zonas, incluindo todas as aldeias, alvos civis e hospitais, é a fórmula citada por um dos generais mais categorizados e nunca ninguém a contestou.
O tribunal militar terá sido injusto para com Calley, que, dentro de uma violência ilimitada perfeitamente aceite, praticou uma carnificina de civis indefesos, uma vez que a ocasião se oferecia e até mesmo se impunha? A confissão de Calley, ao declarar que antes de ser considerado culpado pensava que o massacre de My Lay fora uma coisa sem grande importância (no big deal), seria assim tão horrivelmente incompreensível e tão incompreensivelmente horrível, quando desde há anos os boletins oficiais enumeravam, quotidianamente e com orgulho, os inimigos abatidos sem diferenciar civis ou militares?
Quem obrigou a chefia do exército, envergonhada com os insucessos, desacreditada e traumatizada pela realidade dos factos que contradiziam as suas profecias optimistas, a anunciar vitórias estupidamente exageradas, a fim de compensar as suas verdadeiras decepções? Numa democracia em que os representantes do povo são livremente escolhidos e podem ser livremente demitidos, também a responsabilidade da opinião pública é muito maior do que sob uma ditadura em que os detentores do poder dispensam a aprovação daqueles em nome dos quais agem. Os delegados do povo escolhidos democraticamente reivindicam, assim, uma imunidade que recusaram aos chefes alemães e japoneses em Nuremberga. Mas se nem os governantes, o exército, e a população que protesta contra uma guerra que a irrita e não deseja são os responsáveis, a quem atribuir então responsabilidades? Quais as culpas que cabem ao establishment. O seu erro reside em ter determinado e tolerado a guerra ou em não ter conseguido uma vitória rápida? Ou em ter induzido o povo a aceitar o combate nesse longínquo Sudeste Asiático como uma operação indispensável de defesa nacional, prodigalizando-lhe apenas informações parciais da verdade dos acontecimentos? Ou o seu erro reside na sua própria existência, dado que o establishment prepara a guerra, que ocasiona actos bélicos e policiais mais perigosos do que todos, porque se baseiam no crime? Pode-se citar, como testemunho de defesa, que existem outros sistemas, contemporâneos ou anteriores, que actuam de forma não menos cruel, impiedosa, brutal e hipócrita. Devemos concluir que, mais cedo ou mais tarde, todas as organizações governamentais exigem guerras e massacres, camuflados durante mais ou menos tempo mas admitidos? O que há a condenar e a reformar? Trata-se da táctica oficial da mentira e da hipocrisia, que acaba por desacreditar não só determinado governo, mas todos os governos afinal? Ou será antes a mentalidade de um povo intoxicado que pretende ver os seus preconceitos confirmados pelos representantes que elege e não protesta contra os actos imorais a não ser quando estes não lhes acarretam o rápido sucesso que esperavam? Para analisar estas questões extremamente complexas, tornam-se necessários métodos novos: é preciso examinar os factos de um ponto de vista social e revolucionário, é preciso debater agressivamente, mas não violentamente, em lugar de tudo basear na justiça que condena à prisão ou à morte de acordo com as leis vigentes.
As nossas democracias ocidentais encontrar-se-iam numa posição difícil, senão fatal, se não tivessem uma desculpa melhor a apresentar do que a sua relativa superioridade moral sobre o regime totalitário nazi. Não basta focar os erros de um indivíduo tomado isoladamente, erros fáceis de determinar através de um processo jurídico, dado a sua limitação a actos isolados. Esse facto não absolve a sociedade pelo seu crime de cumplicidade nem absolve, de modo algum, o culpado. Não há nenhuma sala de tribunal em que o banco dos réus seja suficientemente grande para conter todos os culpados. É demasiado pedir à justiça, e esperar da mesma, uma decisão quanto a problemas que dizem respeito a toda a sociedade. É certo que todo o processo jurídico serve para determinar, oficialmente, a extensão da falta e do castigo do acusado, mas serve, também, sem que tal se confesse, para ilibar os que não podem ser acusados mas que contribuem para o crime pela sua indiferença, insensibilidade, provocações, incitamentos ou uma discreta aprovação.
Ao longo da história moderna, nunca uma nação bélica, em plena guerra, empregou a justiça ou condenou por crimes de guerra — termo até aqui exclusivamente reservado às atitudes do inimigo — os seus próprios oficiais e combatentes. É nesse ponto que reside o mérito incontestável do duro acontecimento chamado «processo Calley». Desmascarou e estigmatizou as tendências dissimuladas e inconscientes da nação relativamente a uma afirmação de direitos mesmo pelo preço de uma carnificina. O facto de este processo ter sido possível, apesar de todas as resistências, o facto de se ter verificado, o facto de a nação americana achar que não só podia mas devia impô-lo, constitui uma esperança de que as obscuras forças de adoração da violência, protegidas por pretensões morais adoptadas sem discussão, talvez não acabem por triunfar.