quinta-feira

A Barbie do Cuíto - Eduardo Agualusa

Não fui testemunha da história que se segue, alguém me contou. Mariana, vou chamar-lhe assim, uma menina dos seus sete anos de idade, s vive num centro de recuperação de mutilados na cidade do Cuíto, no interior de Angola. Perdeu uma perna ao pisar uma mina, o que ali, naquele abismo remoto, é uma história banal.

Uma tarde apareceu no centro um médico português, ao serviço de uma organização não governamental europeia, a distribuir brinquedos. Viu a menina e estendeu-lhe uma boneca. A menina segurou a boneca com cuidado. Achava-a estranha, muito magra, demasiado pálida, com uma cabeleira escorrida e loura, a lembrar uma espiga de milho bem madura. Algo nela lhe parecia ainda mais estranho: tinha duas pernas. Quando o médico regressou ao centro, poucas semanas depois, voltou a reparar em Mariana. A menina parecia feliz com a sua filha loura. Transportava-a às costas, num pano, à maneira tradicional. Falava com ela. Dava-lhe banho. Reparando melhor na boneca, porém, o médico descobriu que lhe faltava a perna esquerda. «O que aconteceu, Mariana, a tua boneca perdeu uma perna?» A menina olhou-o, assustada:

«Arranquei», disse, «agora, sim, é gente.»

Lembrei-me de Mariana ao ler o noticiário sobre a intervenção norte-americana na Colômbia. Explico-me melhor: primeiro lembrei-me de uma entrevista de Hélio Luz, antigo chefe da polícia do Rio de Janeiro, defendendo que se aos Estados Unidos é reconhecido o direito de intervir em países do terceiro mundo para combater a produção de cocaína, então aqueles mesmos países deveriam poder entrar em território norte-americano para encerrar as fábricas de armamento. Este argumento parece-me irrespondível se o que estiver em causa for o fabrico de minas antipessoais.

A produção de minas é, na minha opinião, um dos maiores escândalos, se não o maior, do nosso tempo. Vale a pena deixar aqui alguns números: cento e dez milhões de minas causam todos os anos 26 mil novas vítimas. Existem 350 tipos de minas que custam entre duzentos escudos e trinta contos; para retirar cada um destes explosivos, porém, gasta-se em média dez vezes o seu custo. Finalmente, dos cerca de cinco milhões de minas que se produzem em cada ano, a maioria é fabricada nos Estados Unidos da América e nos territórios da antiga União Soviética.

Ao contrário do que muita gente julga, o objectivo da mina não é matar: este engenho pavoroso foi pensado para mutilar. Um mutilado exige cuidados, custa dinheiro e ainda por cima afecta negativamente a moral do inimigo – mais, bastante mais, do que um companheiro morto. A perversão foi ao ponto de se inventarem minas coloridas, chamadas borboletas, destinadas a atrair a atenção de crianças.

Uma única vez experimentei a sensação de caminhar num campo de minas. Não gostaria de repetir a experiência. Foi há alguns anos. Viajava num jipe com militares. No meio da viagem, num lugar que parecia muito longe de qualquer guerra, longe da maldade humana, o motorista decidiu parar o carro para que todos pudéssemos sair e desentorpecer as pernas. Afastei-me alguns metros, tentando alcançar um pouco de intimidade para aliviar a bexiga, quando ouvi de repente gritar o meu nome. Um dos soldados, junto ao jipe, agitava os braços, e repreendia-me, dizendo que era perigoso sair da berma da estrada porque em toda aquela região havia muitas minas.

Não sei se havia ou não. O que sei é que essa possibilidade alterou por completo a forma como até àquele instante eu percebia a paisagem. Um segundo antes, eu via abrir-se diante de mim um amplo horizonte verde e vivo; um perfume a terra molhada vibrava no ar; pássaros, cujo nome nunca saberei, cantavam num bosque próximo. Um segundo depois, eu apenas vi o que não era possível ver: os pequenos animais de carapaça rija, escondidos debaixo da lama, à espera que eu lhes pusesse o pé em cima para assim cumprirem a sua triste missão – explodir. Levei a eternidade para percorrer os trinta metros que me separavam do jipe. Milhões de camponeses vivem com esse terror a cada passo que dão.

Segundo a ONU, seriam necessários mais de mil anos para, com a actual tecnologia, conseguir retirar todas as minas plantadas no mundo. Esta operação custaria 33 mil milhões de dólares. Volto a lembrar que a maior parte destes engenhos não são fabricados num qualquer país pária por uma organização criminosa de loucos extremistas – são fabricados em países democráticos, com destaque para os Estados Unidos da América. O desafio lançado por Hélio Luz deveria ser levado a sério por todos nós, as vítimas, as vítimas potenciais. A menos que Mariana tenha razão.

in «Pública»,
suplemento do jornal Público, 24 de Setembro de 2000