quinta-feira

A violência no mundo moderno - II - Friedrich Hacker

Friedrich Hacker
Agressividade – a violência do mundo moderno
Lisboa, Livraria Bertrand, 1972
(excertos)


CALLEY: «TU MATARÁS»

No decurso do processo Calley, que durara longos meses, os jurados oficiais tinham-se limitado a examinar, de acordo com a lei, as provas que as testemunhas, a defesa e o Ministério Público lhes apresentavam. Tinham-se mantido fiéis ao seu juramento e nada mais efectuado do que o cumprimento do dever. Estava para lá do âmbito da sua competência examinar o porquê que fizera recair a acusação sobre os ombros de Calley e não de outros, ou estudar os actos de outros soldados nesta ou noutras guerras. O tenente Calley era acusado do assassínio premeditado de cento e dois civis, velhos, mulheres e crianças, cometido em duas horas diferentes do mesmo dia, em My Lay. Ele mesmo admitiu ter disparado a curta distância (menos de um metro e meio) contra um fosso onde se encontravam dezenas de prisioneiros vietnamitas. Não verificara os resultados do seu procedimento. Mais de cem declarações de testemunhas afirmaram que Calley tinha atirado contra crianças indefesas que iam a fugir, que abatera prisioneiros desarmados e que, a pontapé, forçara os subordinados a atirar contra os civis presos no fosso. Quando Calley solicitou a benevolência do júri e pediu aos jurados que, pelo menos, lhe concedessem a vida, já que lhe tinham tirado a honra, o procurador-geral gritou que a desonra de Calley não se encontrava no veredicto, mas nos actos que cometera. Durante os dias que durou o debate, os jurados tentaram tudo para considerar Calley inocente, mas o processo demonstrara a cada um que os actos de Calley eram indiscutivelmente criminosos. Os jurados não concordaram porém num ponto: os crimes cometidos eram assassínios premeditados ou poderiam ser considerados num âmbito de menor gravidade? Foi pronunciada a acusação de assassínio premeditado numa maioria de dois terços.

As autoridades militares ficaram surpreendidas, chocadas e perturbadas pela reacção do público e do presidente. A princípio, e mercê de um espontâneo reflexo burocrático, tinham tentado proteger os direitos institucionais arquivando os múltiplos relatórios referentes aos massacres de My Lay entre os numerosos dossiers sobre assuntos análogos. O exército não desejava, evidentemente, chamar a atenção do público para acontecimentos semelhantes. Como as acusações, solidamente fundamentadas e reunidas por um corajoso jornalista, foram, no entanto, difundidas por todos, não se pôde evitar um processo sensacional. Grandes fracções da opinião pública não conseguiram acreditar que os soldados americanos fossem capazes de cometer tais horrores e consideraram as acusações como infames calúnias, cuja mentira se tornava necessário demonstrar publicamente; outros pensaram que se tratava de um caso isolado e que era necessário dar o exemplo através deste criminoso de uniforme. De qualquer modo, as autoridades civis mais elevadas, inclusive o presidente, não só exigiam o processo contra o acusado mas igualmente contra os oficiais de patente superior e generais que, a princípio, tinham tentado ocultar e falsear todo o caso.

As primeiras investigações do Estado-Maior relativamente às suas próprias (manobras para ressalvar o assunto não foram longe. O facto não surpreendeu ninguém. Não foi apresentada queixa contra o general Koster, que, na manhã do massacre de My Lay, inspeccionara o local de helicóptero, nessa altura ainda em paz, nem contra qualquer outro coronel ou general. Apenas Calley e os seus subordinados, bem como o seu superior imediato, o capitão Medina, foram chamados a responder pelos seus actos ante a justiça. Não vem a propósito discutir aqui se ao exército não restava outra hipótese para além de uma queixa contra Calley, uma vez divulgados os horríveis acontecimentos, ou se obedeceu, de vontade ou pela força, a autoridades civis superiores. A verdade é que o processo se iniciou e, a fim de restaurar a honra do exército americano, prosseguiu publicamente segundo as boas e incompreensíveis regras do direito jurídico.

Antes do mais, o resultado revelou-se catastrófico para o exército, a democracia e o direito. Numa noite o acusado foi promovido a herói nacional precisamente devido ao massacre que ele mesmo confessava ter cometido. O povo mostrou-se solidário em não aceitar a sua condenação, mas apenas nisso. Cada um acusava por um processo de generalização simplista. Em primeiro lugar, nada se passara. Em segundo lugar, os factos tinham sido largamente exagerados. Em terceiro lugar, o que acontecera processara-se ao serviço de uma boa causa. Em quarto lugar, as vítimas tinham merecido o justo castigo, uma vez que eram comunistas, simpatizantes dos comunistas, deles não se diferençando, ou viviam num país simpatizante do comunismo. Em quinto lugar, tudo acontecera no ardor do combate. Em sexto lugar, foram os outros a começar ou podiam tê-lo feito. Com a condenação de Calley, que escarneceu de todo o espírito de camaradagem e lealdade, o exército ficou manchado. Também, talvez, os oficiais superiores de carreira tivessem querido descarregar as suas próprias culpas sobre o seu infeliz subalterno, o tenente Calley. O general Westmoreland, que era, na altura, comandante-chefe americano no Vietname, defendeu-se irritadamente de toda e qualquer atribuição de culpa e de comparações com o general japonês Yamashita, executado após a Segunda Guerra Mundial e que fora considerado responsável por todos os actos do exército sob as suas ordens, mesmo que as ignorasse e não as tivesse podido impedir. As mais altas entidades do exército criticaram a intervenção do presidente, que tornara supérfluos e ridículos os penosos e fatigantes processos jurídicos e trouxera a liberdade a Calley. O exército apressou-se a declarar que Calley, mesmo sem a intervenção do presidente, nunca fora mantido sob detenção até recurso à sentença. Por outro lado, ignora-se o que acontecerá doravante às centenas de soldados que — não por massacre mas por embriaguez, faltas ao serviço ou roubo — têm de esperar meses seguidos na prisão a decisão ao seu apelo. O exército ignora porque se viu obrigado, contra sua vontade, a instaurar um processo criminal contra Calley e também o motivo pelo qual, seguidamente, foi humilhado, insultado, desprezado pela população, desautorizado e ridicularizado pelo seu chefe supremo, simplesmente por ter cumprido o seu dever ao seguir as ordens do presidente e ao obedecer ao desejo da opinião pública. Em que reside a honra do exército? Na dissimulação incondicional dos actos de todo o indivíduo que usa um uniforme, que age, crê agir ou declara agir ao serviço (estando incluído o massacre premeditado de civis e prisioneiros indefesos), ou na afirmação do princípio geral, que autoriza e incita mesmo à violência na guerra, se bem que dentro de determinados limites?


continuação: A violência no mundo moderno III