segunda-feira

Os mil pássaros de Sadako - Eleanor Coerr

Prólogo

O livro Os Mil Pássaros de Sadako é baseado na vida de uma menina que viveu no Japão de 1943 a 1955.

Sadako morava em Hiroshima quando a aviação americana largou uma bomba atómica sobre a cidade. Morreu dez anos depois, devido às radiações emitidas pela bomba.
Graças à sua coragem, Sadako tornou-se uma heroína para todas as crianças japonesas. Esta é a sua história.

Um dia de sorte

Sadako tinha nascido para correr. A mãe gostava de dizer que Sadako sabia correr mesmo antes de saber andar…
Nessa manhã de Agosto de 1954, no Japão, mal Sadako acabou de se vestir, desatou a correr para a rua. O sol nascente fazia realçar os reflexos de cobre dos seus cabelos pretos. Nenhuma nuvem escurecia o céu azul. «É bom sinal», disse para consigo Sadako, que estava atenta ao menor presságio.
De regresso a casa, viu que os irmãos ainda dormiam, deitados nos seus pequenos colchões. Sacudiu Masahiro, o irmão mais velho:
— Levanta-te, preguiçoso, é o Dia da Paz!
Masahiro resmungou e bocejou. Como qualquer rapaz de catorze anos, gostava de se levantar tarde. Só que a fome já apertava e da cozinha vinha um delicioso aroma de sopa de peixe. Masahiro levantou-se, seguido de Mitsue e Eiji.
Sadako ajudou Eiji a vestir-se. Eiji tinha seis anos mas, às vezes, ainda perdia uma meia ou a camisola interior. Em seguida, ajudada pela irmã, Mitsue, Sadako dobrou os colchões e arrumou-os no armário. Entrou depois na cozinha, como se fosse um turbilhão, e disse à mãe:
— Mamã, estou tão impaciente por ir ao carnaval! Será que poderíamos tomar o pequeno-almoço mais cedo?
A mãe de Sadako estava a cortar cuidadosamente rabanetes marinados, para servir com o arroz e a sopa. Lançou-lhe um olhar severo e ralhou com ela:
— Tens onze anos, minha filha. Na tua idade, já não devias chamar “carnaval” a este dia de recolhimento. Todos os anos, a 6 de Agosto, celebramos a memória daqueles que morreram quando a bomba atómica foi lançada sobre a nossa cidade.
O senhor Sasaki entrou pela porta das traseiras e secundou o que dissera a esposa:
— É verdade. Tens de mostrar respeito. A tua avó foi morta nesse dia funesto.
Sadako protestou:
— Mas eu respeito a avó. Rezo por ela todas as manhãs. Só que hoje estou tão contente…
O pai interrompeu-a:
— A propósito, é tempo de fazermos as nossas orações.
A família Sasaki reuniu-se em torno do pequeno altar onde se encontrava a fotografia da avó, colocada numa moldura dourada. Sadako ergueu os olhos para o tecto e perguntou-se se o espírito da avó estaria a pairar sobre eles.
O pai interpelou-a:
— Sadako!
A rapariga baixou a cabeça imediatamente. Dançou com os dedos do pé enquanto o pai rezava em voz alta. O senhor Sasaki pediu que o espírito dos seus antepassados estivesse em paz. Agradeceu o salão de cabeleireiro e os filhos maravilhosos que tinha. Rezou para que a leucemia, a chamada “doença da bomba”, não afectasse a família.
Muitos Japoneses ainda morriam devido a esta doença, embora a bomba tivesse sido lançada nove anos antes. A atmosfera tinha ficado saturada de radiações, e as pessoas, como que envenenadas para o resto das suas vidas.
Ao pequeno-almoço, Sadako engoliu a sopa e o arroz. Masahiro falou de raparigas que pareciam dragões esfomeados, mas a irmã nem o ouviu. Estava a pensar no que se tinha passado no ano anterior: os banhos de multidão, a música, o fogo de artifício. Ainda sentia o gosto do algodão-doce na boca.
Foi a primeira a acabar o pequeno-almoço e quase virou a mesa ao levantar-se. Era alta para a idade e as suas pernas compridas atravessavam-se no seu caminho.
— Anda lá, Mitsue, ajuda-me a lavar a louça, para podermos sair mais depressa.
Depois da cozinha limpa e arrumada, Sadako atou fitas vermelhas à ponta das suas tranças e saltitou junto à porta da entrada.
A mãe disse-lhe, num tom gentil:
— Sadako, só saímos às sete e meia. Senta-te e espera, sossegada, que estejamos todos prontos.
Sadako sentou-se na esteira. Os pais nunca estavam com pressa! De repente, uma aranha aveludada atravessou a sala. Era um bom presságio. Sadako tinha a certeza de que aquele ia ser um dia fantástico. Colocou a aranha na palma da mão e deitou-a fora com cuidado.
— Digam o que disserem, as aranhas nunca deram sorte! — disse Masahiro.
— É o que veremos! — respondeu-lhe Sadako, alegremente.

O Dia da Paz

A família Sasaki pôs-se a caminho. O dia estava quente e as ruas encontravam-se cheias de gente e de pó. Sadako correu ao encontro de Chizuko, a sua melhor amiga. Conheciam-se desde o infantário. Sadako sentia que iriam ser sempre muito boas amigas.
Chizuko fez-lhe sinal e aproximou-se, sem pressa. Sadako suspirou. Se ao menos a amiga fosse mais rápida.
— Que tartaruga! Despacha-te ou vamos perder tudo!
— Sadako, anda mais devagar por causa do calor — avisou a mãe.
Mas as raparigas já estavam no fim da rua. A senhora Sasaki franziu o sobrolho.
— A Sadako tem sempre tanta pressa que nunca pára para me ouvir.
— Já a viste caminhar, se podia correr, andar a pé coxinho, ou aos saltos? — perguntou-lhe o marido, orgulhoso da filha, que conseguia correr tão longe e tão depressa.
À entrada do Parque da Paz, as pessoas, em silêncio, fizeram fila indiana. Nas paredes do monumento aos mortos estavam expostas fotografias das vítimas, tiradas um pouco por toda a cidade devastada. A bomba atómica, também chamada “bola de luz”, transformara Hiroshima num deserto.
Sadako recusou-se a ver aquelas imagens assustadoras. Atravessou o edifício, apertando com força a mão de Chizuko.
— Lembro-me da “bola de luz” — murmurou Sadako ao ouvido da amiga. O céu parecia iluminado por mil sóis. O calor trespassou-me como se mil agulhas estivessem a espetar-me!
— Mas tu não passavas de um bebé! Como podes lembrar-te? — perguntou Chizuko.
— Claro que me lembro! — teimou Sadako.
Os sacerdotes budistas e o Presidente da Câmara pronunciaram discursos e depois alguém soltou centenas de pombas brancas, que fizeram um círculo em roda do templo de Genbaku. Para Sadako, estas pombas simbolizavam as almas dos mortos a elevarem-se, livres, no céu. Logo que as cerimónias acabaram, Sadako encaminhou a família para a senhora que vendia algodão-doce. A guloseima ainda sabia melhor do que no ano passado. O dia passou depressa, como sempre! Sadako observou tudo o que estava exposto nas prateleiras e cheirou a comida deliciosa. Havia lojas que vendiam de tudo, desde bolos de soja a grilos.
Seria tudo perfeito se não tivesse de se cruzar com pessoas cheias de cicatrizes esbranquiçadas. Tinham ficado tão queimadas pela bomba que já quase não tinham aparência humana. Sadako não pôde impedir-se de virar a cara à primeira que se aproximou dela.
O barulho da multidão aumentava à medida que a noite caía. Logo que o brilho do último fogo de artifício se esbateu no céu, a multidão dirigiu-se para o rio Ohta com lanternas de papel na mão. O senhor Sasaki tivera o cuidado de acender as velas no interior dos seis lampiões, um para cada membro da família. As lanternas ostentavam os nomes dos familiares mortos pela “bola de luz”. Sadako escolheu pôr o nome da avó na sua. Quando todas as chamas iluminaram a margem, cada um depôs a sua lanterna no rio Ohta, que as conduziria ao mar, como se fossem milhares de pirilampos a flutuar nas águas escuras.
Nessa noite, Sadako demorou a adormecer. Tentou lembrar-se de tudo o que se tinha passado durante o dia. Afinal, Masahiro estava errado. No dia seguinte, Sadako iria dizer ao irmão que a aranha lhe tinha dado sorte.

O Segredo de Sadako

No início do Outono, Sadako recebeu uma notícia tão boa que mal podia esperar para a contar à família. Quando chegou a casa, descalçou os sapatos e abriu a porta com grande alarido.
— Cheguei!
A senhora Sasaki preparava o jantar na cozinha.
— Nem vais acreditar no que tenho para te dizer! Adivinha!
— Passam-se tantas coisas maravilhosas na tua vida, Sadako. Desisto.
— Lembras-te da corrida para a festa das escolas? Fui escolhida pela Turma Bambu para fazer parte da equipa de estafetas.
Sadako dançava na cozinha e fazia voltear a pasta.
— Se ganharmos, serei seleccionada para fazer parte da equipa do colégio!
É o que Sadako mais desejava na vida.
Ao jantar, o senhor Sasaki discorreu longamente sobre o orgulho e a honra familiares. Até Masahiro se sentiu emocionado. Sadako, demasiado excitada para engolir o que quer que fosse, sorria extasiada.
A partir daquele momento, só pensava na corrida de estafetas. Treinava todos os dias e, às vezes, até vinha para casa a correr. Um dia, Masahiro cronometrou-a com o grande relógio do pai e o tempo de Sadako surpreendeu toda a gente. “Quem sabe”, sonhava, “se virei a ser a melhor corredora da escola?”
O grande dia chegou por fim. Uma multidão de pais, familiares e amigos foi assistir às provas. Sadako estava tão nervosa que temia que as pernas não lhe obedecessem. As colegas de equipa pareciam-lhe, de repente, mais pequenas e menos fortes do que as adversárias. A menina confiou os seus receios à mãe, que a tranquilizou:
— É natural que tenhas medo, filha. Mas não te preocupes. Quando estiveres na pista, vais sentir-te forte outra vez.
Chegou a hora da prova.
— Faz o melhor que puderes — disse o senhor Sasaki, pegando na mão da filha. — Temos muito orgulho em ti.
Graças aos ternos encorajamentos dos pais, Sadako sentiu-se menos receosa. “Não importa se ganho ou perco; a minha família gosta de mim”, pensou.
Quando deram o sinal de partida, Sadako concentrou-se. Logo que lhe entregaram o testemunho, correu até perder o fôlego. No fim da prova, o coração doía-lhe de tanto bater. Sadako sentiu-se mal. Tinha vertigens e quase não ouvia o anúncio da vitória da sua equipa. Em volta dela, toda a Turma Bambu aplaudia e gritava de alegria. Sacudiu a cabeça uma ou duas vezes e o mal-estar dissipou-se.
Sadako passou o Inverno a tentar melhorar o seu tempo. Tinha de treinar todos os dias se quisesse entrar na equipa do colégio. Às vezes, depois de ter corrido muito, sentia vertigens, mas decidiu não falar disso a ninguém. Tentou convencer-se de que tudo estava bem, e de que as tonturas iriam desaparecer tão depressa quanto tinham aparecido. Mas não melhorou. Cheia de medo, escondeu este segredo de todos, inclusive da sua melhor amiga, Chizuko.
Na véspera do ano novo, Sadako pediu que o seu mal-estar desaparecesse como por encanto. Tudo seria perfeito se não tivesse de carregar aquele fardo. À meia-noite, confortavelmente coberta com um edredão de penas, ouviu os sinos do templo. Dizia-se que, a cada badalada, os demónios do ano que findava eram expulsos para darem lugar ao novo ano. Sadako repetiu doze vezes o seu desejo.
Na manhã seguinte, como de costume, a família Sasaki juntou-se à multidão que ia homenagear os mortos. A senhora Sasaki estava muito elegante no seu quimono de seda com flores estampadas. Prometeu a Sadako:
— Quando puder, hei-de oferecer-te um lindo quimono. Uma rapariga da tua idade deve ter sempre um no guarda-roupa.
Sadako agradeceu educadamente mas, naquele momento, ter um quimono era a menor das suas preocupações. Estava obcecada pelas corridas e pela equipa do colégio. No meio de tantas pessoas felizes, conseguiu, por instantes, esquecer o seu terrível segredo. A alegria daquele dia de Inverno afastou as suas inquietações. Ao regressar a casa, fez uma corrida com o irmão mais velho e bateu-o. A senhora Sasaki pendurou por cima da porta os símbolos de prosperidade, que protegeriam a casa ao longo do ano. Um ano que começava tão bem dificilmente acabaria mal.

Um segredo desvendado

Durante várias semanas, as orações e os sinais de bom augúrio pareciam surtir efeito. Sadako sentia-se bem e corria cada vez mais longe e mais depressa.
Mas o seu sonho terminou num dia de Fevereiro, frio e cruel. Sadako estava a correr no recreio da escola quando, de repente, começou a ver tudo à roda e caiu ao chão. Um professor precipitou-se para a ajudar.
— Penso… penso que estou um pouco cansada — disse-lhe Sadako, com uma voz fraca.
Quando tentou levantar-se, as pernas tremeram e cederam. O professor pediu a Mitsue que fosse para casa e prevenisse o senhor Sasaki.
Este fechou imediatamente o salão de cabeleireiro e levou a filha ao hospital da Cruz Vermelha. Ao entrar no hospital, Sadako sentiu muito medo. Uma parte do edifício era reservada às pessoas que sofriam da doença da bomba.
Alguns minutos mais tarde, Sadako foi admitida: uma enfermeira fez-lhe uma radiografia aos pulmões e tirou-lhe sangue para análise. O Dr. Numata examinou-lhe as costas e fez-lhe várias perguntas. Três outros médicos vieram também examiná-la. Um deles sacudiu a cabeça e passou-lhe a mão pelos cabelos.
Toda a família de Sadako foi visitá-la. Os pais falavam com o médico em voz baixa. De repente, a senhora Sasaki exclamou:
— Uma leucemia! Não pode ser!
Mal ouviu aquela palavra aterradora, Sadako tapou os ouvidos. Como podia ela sofrer da doença, se a bomba nem lhe tocara? Uma enfermeira, a senhora Yasunaga, acompanhou-a ao quarto e deu-lhe uma espécie de quimono feito de algodão. Mal Sadako se deitou, a família entrou no quarto.
A senhora Sasaki abraçou a filha.
— Tens de ficar aqui durante algum tempo — disse-lhe, num tom de voz que se esforçava por ser alegre. — Virei ver-te todas as noites.
— Nós… nós vimos depois da escola — prometeu Masahiro.
Assustados, Mitsue e Eiji assentiram.
— É verdade que tenho a doença da bomba? — perguntou Sadako ao pai.
O olhar do senhor Sasaki toldou-se, mas tranquilizou a filha:
— Os médicos querem fazer exames suplementares, é tudo! Penso que terás de ficar aqui duas ou três semanas.
Duas ou três semanas! Mas isso era uma eternidade. Já não iam aceitá-la no colégio. Pior ainda: já não ia poder fazer parte da equipa de estafetas. Com um nó na garganta, Sadako reteve as lágrimas.
A senhora Sasaki sacudiu as almofadas e ajustou a coberta. O pai tossicou.
— Precisas…precisas de alguma coisa?
Sadako abanou a cabeça. Do que ela precisava era de regressar a casa. Mas quando? Sente um nó no estômago. Ouviu dizer que muitas das pessoas que eram internadas nunca regressavam a casa.
A senhora Yasunaga disse que Sadako tinha de descansar e que a hora das visitas terminara. Depois de todos se irem embora, a menina enfiou a cara na almofada e chorou. Nunca se tinha sentido tão só e infeliz na vida.

A grua dourada

Na manhã seguinte, Sadako despertou devagar. Tentou ouvir os barulhos habituais da casa: a mãe a preparar o pequeno almoço…mas só lhe chegaram aos ouvidos os sons novos e diferentes do hospital. Suspirou fundo. Tinha desejado tanto que a véspera não tivesse passado de um sonho mau. Mas a chegada da senhora Yasunaga obrigou-a a encarar a realidade. Vinha dar-lhe a primeira injecção.
— As injecções fazem parte da vida no hospital — cantarolou a enfermeira roliça. — Tens de te habituar.
— Eu quero é ficar boa…para poder regressar a casa.
De tarde, Sadako recebeu a sua primeira visita: Chizuko. A amiga sorria misteriosamente e trazia algo escondido atrás das costas.
— Fecha os olhos — pediu Chizuko. Sadako obedeceu prontamente. A amiga colocou algumas folhas de papel e um par de tesouras em cima da cama.
— Já podes abri-los.
— O que é?
Chizuko sorria. Estava muito contente com a surpresa que acabava de fazer à amiga.
— Pensei muito naquilo que te faria sentir melhor — disse com orgulho. — Olha!
Cortou um grande quadrado de papel dourado e, depois de o dobrar algumas vezes, mostrou o pássaro magnífico que tinha feito: era uma grua.
— Mas como posso melhorar com um origami? — inquiriu Sadako, perplexa.
— Não te lembras da lenda das gruas? — perguntou-lhe Chizuko. — Diz-se que vivem mil anos. Se uma pessoa doente fizer mil, os deuses escutarão as suas preces e curá-la-ão.
Estendeu a grua à amiga.
— Ofereço-te a primeira.
Os olhos de Sadako encheram-se de lágrimas. Chizuko era tão gentil em lhe oferecer este talismã, logo ela que não acreditava em augúrios. Sadako pegou na grua dourada e formulou um desejo. Experimentou uma sensação esquisita no momento em que tocou no pássaro: devia ser um bom sinal!
— Obrigada, Chizuko. Nunca hei-de separar-me dela.
Sadako tentou fazer um pássaro, mas não era tão fácil quanto parecia. Chizuko explicou-lhe as partes difíceis. Em cima da mesa-de-cabeceira, ao lado da grua dourada, Sadako colocou os primeiros dez pássaros que fez. Não eram todos perfeitos, mas para começar…
— Já só faltam novecentos e noventa — disse Sadako.
Sentia-se bem com a grua-talismã junto dela. Dentro de algumas semanas, já teria certamente feito mil. Nessa altura, estaria pronta para regressar a casa.
Nessa tarde, Masahiro trouxe-lhe os deveres da escola. Quando viu todos os origami, exclamou:
— Mas estes pássaros estão a ocupar espaço demais. Deixa-me pendurá-los no tecto.
Sadako sorriu abertamente.
— Prometes que penduras todos os que eu fizer?
Masahiro prometeu.
— Muito bem! — disse Sadako, com os olhos a brilhar de malandrice. — Então vais ter de pendurar mil!
— Mil? Estás a brincar, espero — resmungou o irmão.
Sadako contou-lhe a lenda das mil gruas. Masahiro coçou a cabeça.
— Enganaste-me bem — disse, fazendo uma careta. — Mas vou cumprir a minha promessa.
Pediu fio e tachas à enfermeira e pendurou os primeiros pássaros. A grua dourada continuava na mesa-de-cabeceira. Quando a senhora Sasaki chegou, acompanhada de Mitsue e de Eiji, ficaram os três surpreendidos ao ver os pássaros no tecto. A mãe lembrou-se de um velho poema:

Em papel colorido
Aves entraram voando
Na nossa casa.

Mitsue e Eiji gostavam mais do pássaro dourado. A mãe escolheu o mais pequeno, feito em papel verde com guarda-sóis cor-de-rosa.
— Escolho este porque os mais pequenos são os mais difíceis de fazer.
Depois das visitas saírem, os doentes sentiam-se muito sozinhos no hospital. Para se manter ocupada e optimista, Sadako fez mais alguns pássaros.
Onze…Vou ficar boa depressa…
Doze…Vou ficar boa depressa…

Kenji

Todos punham pedaços de papel de lado para as gruas de Sadako. Chizuko trouxe-lhe o papel que a Turma Bambu tinha oferecido; o senhor Sasaki recuperava todo o papel que podia no salão de cabeleireiro. Até a senhora Yasunaga lhe oferecia embalagens de medicamentos. Conforme prometera, Masahiro pendurou todos os pássaros no tecto do quarto. Às vezes, ficavam vários suspensos do mesmo fio.
Durante os meses seguintes, Sadako sentiu-se um pouco melhor. No entanto, o Dr. Numata preferiu que ela continuasse no hospital. A menina sabia que estava com leucemia, mas também sabia que algumas pessoas se curavam. Tinha esperança de vir a ser uma delas. Nos dias que corriam bem, o tempo passava depressa entre os deveres da escola, as visitas que ela distraía com jogos, adivinhas e canções, e as cartas que escrevia a amigos e correspondentes. As noites eram consagradas às gruas de papel. Sadako já tinha mais de trezentas, impecavelmente dobradas. Os seus dedos já se tinham habituado à tarefa: trabalhavam depressa e nunca se enganavam.
Nos dias que corriam mal, tinha dores. Pouco a pouco, a doença da bomba tirara-lhe todas as energias. Quando não estava prostrada, com enxaquecas horríveis que a impediam de ler e escrever, tinha a sensação de que os seus ossos estavam a arder. As vertigens, cada vez mais frequentes, mergulhavam-na num torpor imenso. Sentia-se fraca demais para fazer o que quer que fosse. Ficava então sentada junto da janela e olhava com inveja o ácer do pátio. Passava horas a observá-lo, com a grua dourada no regaço. Naquele dia estava particularmente cansada, mas a senhora Yasunaga insistiu em levá-la na cadeira de rodas até ao pórtico cheio de sol. Aí, Sadako encontrou Kenji pela primeira vez. Tinha nove anos e era pequeno para a idade. A cara era magra e os seus olhos negros brilhavam.
— Olá! Chamo-me Sadako.
Kenji saudou-a docemente, numa voz apagada. Em breve estavam a falar como se se conhecessem desde sempre. Kenji já estava no hospital há muito tempo, mas tinha poucas visitas. Era órfão e morava com uma das tias numa cidade próxima.
— É tão velhinha que só vem ver-me uma vez por semana — confessou a Sadako. — Passo a maior parte do tempo a ler.
Sadako virou a cabeça quando viu o rosto de Kenji ensombrar-se.
— Não é grave — suspirou o menino — porque vou morrer em breve. Tenho a doença da bomba.
— Mas isso é impossível — replicou Sadako. — Nem sequer eras nascido quando a bomba caiu.
— O veneno contaminou o corpo da minha mãe e ela transmitiu-mo.
Sadako gostaria de o reconfortar, mas nem sabia o que dizer. De repente, lembrou-se da lenda das gruas.
— Podias fazer origami como eu — sugeriu-lhe. — Ainda pode acontecer algum milagre!
— Já conheço a história das gruas — respondeu Kenji, tranquilamente — mas é demasiado tarde. Nem mesmo os deuses podem ajudar-me…
A enfermeira juntou-se a eles e perguntou ao menino, num tom severo:
— Kenji, como podes falar assim?
O rapaz lançou-lhe um olhar intenso:
— Não sou nenhum idiota! Além do mais, sei ler. Os resultados das minhas análises estão cada vez piores.
A enfermeira ficou perturbada.
— Com essa tagarelice vais cansar-te ainda mais…
Levou Kenji de volta para o interior do hospital.
Quando Sadako voltou para o quarto, estava pensativa. Tentou imaginar-se doente e sem família. Achava que Kenji era um menino muito corajoso. Fez uma grua no seu papel mais bonito e lançou-a para dentro do quarto do menino, que ficava em frente ao seu. Será que o pássaro iria dar-lhe sorte? Sadako dobrou mais alguns origami para a sua colecção.
Trezentos e noventa e oito…
Trezentos e noventa e nove…
No dia seguinte, Kenji não estava no pórtico. Sadako tinha ouvido barulho no corredor a altas horas da noite, o barulho de uma cama a ser deslocada. A senhora Yasunaga veio anunciar-lhe a morte do amigo. Sadako virou-se para a parede e deixou correr as lágrimas. A enfermeira colocou-lhe suavemente a mão no ombro com gentileza.
— Vem sentar-te junto da janela para falarmos um pouco — convidou-a.
Sadako parou de soluçar e pôs-se a olhar o luar.
— Acha que o Kenji está lá em cima, no mar de estrelas?
— Onde quer que esteja, estou certa de que está feliz — respondeu-lhe a enfermeira. — Já se libertou do corpo fatigado e doente. O seu espírito é agora livre.
Em silêncio, Sadako escutava o rumorejar das folhas do ácer.
— Sou eu a seguir, não sou?
— Claro que não! — respondeu-lhe a enfermeira, sacudindo energicamente a cabeça. — Trouxe-te um pedacinho de papel colorido. Vais fazer uma grua para mim antes de te deitares. Quando tiveres acabado os teus mil pássaros, já serás velhinha.
Sadako queria muito acreditar no que a enfermeira lhe disse e pôs-se a fazer mais pássaros.
Quatrocentos e sessenta e três…Vou ficar boa depressa…
Quatrocentos e sessenta e quatro…Vou ficar boa depressa…

Centenas de desejos

Chegou o mês de Junho e com ele os aguaceiros. Dia após dia, uma chuva tão cinzenta como o céu fustigava as janelas. A água escorria ao longo das folhas da árvore do pátio. O quarto começou a cheirar a mofo. Até os lençóis estavam húmidos.
Sadako empalidecia a olhos vistos e perdera totalmente as forças. As únicas visitas autorizadas eram as dos pais e as de Masahiro, o irmão mais velho. A turma ofereceu-lhe uma boneca Kokeshi para a animar. Sadako gostava muito do sorriso melancólico da boneca de madeira, bem como das rosas vermelhas pintadas no quimono. Pô-la na mesa-de-cabeceira, ao lado da grua dourada.
A senhora Sasaki sentia-se inquieta porque a filha não se alimentava devidamente. Um dia, trouxe-lhe uma surpresa, embrulhada num furoshiki. No quadrado de tecido vinha tudo aquilo de que Sadako mais gostava: paté imperial, frango e arroz, ameixas em calda e bolos de soja.
Sadako reclinou-se nas almofadas e tentou comer. Mas em vão: as gengivas inflamadas doíam-lhe tanto que não conseguia mastigar. Acabou por desistir. Afastou a comida com as mãos. Os olhos da mãe brilhavam como se fosse chorar. Sadako exclamou:
— Sou lenta como uma tartaruga.
Não queria que a mãe se sentisse mal. Sabia que a família não podia dar-se ao luxo de comprar comida tão cara. As lágrimas ardiam-lhe nos olhos, mas apressou-se a limpá-las.
— Não te aflijas — tranquilizou-a a mãe, abraçando-a. — Em breve estarás melhor. Nessa altura…
A senhora Sasaki leu poemas, com a filha aninhada no colo dela. Quando Masahiro chegou, a irmã estava mais tranquila e feliz. Masahiro contou-lhe as últimas novidades da escola e debicou o jantar-surpresa. Antes de se ir embora, disse:
— Já me esquecia! O Eiji manda-te uma prenda.
Enfia a mão no bolso e tira um pedaço de papel prateado e amarrotado.
— Diz que é para fazeres uma grua.
Sadako cheirou o papel.
— Hum… Cheira-me a açúcar cristalizado. Espero que os deuses gostem.
Desataram os três a rir. Há vários dias que Sadako não se ria. Era bom sinal. Será que a magia da grua dourada já tinha começado a fazer efeito? Alisou o papel e fez um pássaro. Quinhentos e quarenta e dois… Mas estava demasiado cansada para continuar. Estendeu-se na cama e fechou os olhos. Ao sair do quarto em bicos de pés, a senhora Sasaki murmurou um poema que recitava a Sadako quando esta era bebé:

Oh! Nuvem de gruas celestes
Protegei o meu filho
Com as vossas asas.

Os últimos dias


Naquele fim de Julho, o sol brilhava e fazia calor. Sadako parecia estar melhor.
— Já ultrapassei as quinhentas gruas — disse a Masahiro. Sinto que vai acontecer algo de bom.
Com efeito, o apetite voltara e as dores eram agora menos fortes. Contente com os progressos de Sadako, o Dr. Numata anunciou que Sadako ia poder ir passar uns dias a casa. Nessa noite, Sadako estava tão excitada que não conseguia dormir. Continuou a fazer gruas para que a magia perdurasse.
Seiscentas e vinte e uma…
Seiscentas e vinte e duas…
Que bom era estar em casa, com a família, a passar as férias grandes! Celebrava-se o O Ban, a festa dos mortos, que regressavam à terra para visitar os seus entes queridos. A senhora Sasaki e Mitsue limparam a casa com desvelo. Havia flores sobre a mesa. A grua dourada e a boneca também lá estavam. Cheirava às iguarias deliciosas dos dias de festa. No altar havia bolos de soja e bolas de arroz dispostos em pratinhos, para os espíritos que estavam de visita. Ao cair da tarde, a senhora Sasaki pendurou uma lanterna por cima da porta para que eles não se perdessem na escuridão. Sadako suspirou de alegria. Talvez não tivesse de regressar ao hospital.
Durante vários dias, os amigos e familiares visitaram-na continuamente. No fim-de-semana, a menina estava de novo pálida e cansada. Contentava-se em ficar sentada, sem se mexer, a olhar para os estavam à sua volta.
— A Sadako é agora uma menina muito educada — disse o pai. — A avó deve estar contente ao ver a neta comportar-se tão bem.
— Como podes falar assim? — insurgiu-se a esposa. — Dava tudo para ter de volta a nossa filha irrequieta.
Precipitou-se para a cozinha enquanto enxugava as lágrimas.
“Estão todos tristes por minha causa”, pensou Sadako “Gostava tanto de voltar ser com dantes. A mamã ficava tão contente!”
Como se lesse os pensamentos da filha, o senhor Sasaki disse-lhe num tom sacudido:
— Então, vá lá… Não te preocupes. Depois de uma boa noite de sono, vais sentir-te melhor.
No dia seguinte, Sadako teve de voltar ao hospital. Pela primeira vez, sentiu-se feliz por regressar à tranquilidade do seu quarto. Os pais ficaram com ela durante muito tempo. De vez em quando, Sadako mergulhava numa estranha sonolência.
— Quando morrer — pediu-lhes — prometem que colocam os meus bolos de soja preferidos no altar, para acolherem o meu espírito?
Demasiado emocionada para falar, a senhora Sasaki apertou com força a mão da filha.
— Chut…— murmurou o pai, numa voz estranha. — Ainda falta muito tempo para que isso aconteça. Não desistas, filha. Só faltam algumas centenas de gruas.
A enfermeira trouxe calmantes. Antes de fechar os olhos, Sadako tocou ao de leve na grua dourada.
— Em breve estarei boa — sussurrou à boneca — e um dia vou correr tão depressa como o vento.
O Dr. Numata fazia-lhe transfusões e dava-lhe injecções quase todos os dias.
— Sei que tens dores, mas não podemos baixar os braços.
A menina anuiu com a cabeça. Nunca se queixava, apesar das dores quase permanentes. Um sofrimento ainda mais horrível a dominava: o medo da morte. Felizmente que a grua dourada a ajudava a resistir, lembrando-lhe de que era preciso manter a esperança.
A senhora Sasaki passava cada vez mais tempo no hospital. Todas as tardes, Sadako ouvia o barulho familiar dos sapatos de plástico que as visitas do hospital tinham de calçar. Os da mãe faziam um barulho particular. Sadako tinha consciência da profunda inquietação da mãe.
As folhas do ácer estavam revestidas de tons de ferrugem e ouro quando os Sasaki vieram fazer uma das últimas visitas a Sadako. Eiji entregou à irmã um embrulho em papel dourado, atado com uma fita vermelha. Sadako abriu-o lentamente e encontrou um quimono em seda estampada com flores de cerejeira. É a prenda que a mãe tanto queria oferecer-lhe. A menina ficou os olhos cheios de lágrimas.
— Nunca vou poder usá-lo e é tão caro!
— Sadako — disse-lhe o pai, num tom de voz doce — a tua mãe deitou-se ontem muito tarde para acabar de o coser. Que tal se o experimentasses, para ela ver se te fica bem?
Sadako teve muita dificuldade de sair da cama. A mãe ajudou-a a enfiar o quimono e a colocar a banda à cinta. A menina ficou contente por ninguém ver as suas pernas inchadas. Atravessou o quarto num passo hesitante e foi sentar-se no sofá junto da janela. Todos se extasiaram diante daquela bela princesa.
Chizuko entrou nesse momento. O Dr. Numata deu-lhe permissão para uma curta visita.
— Fica-te melhor do que o uniforme da escola! — exclamou.
Todos se riram, incluindo Sadako.
— Então, quando estiver melhor, levo-o todos os dias para a escola — brincou.
Mitsue e Eiji riram-se da ideia. Todos tinham a impressão de reviver os bons momentos passados em família. Entretiveram-se com jogos de letras e trautearam as canções favoritas de Sadako. Esta nem se mexia no sofá e tentava por tudo esconder-lhes o seu sofrimento.
A presença deles valia o sacrifício. Quando se foram embora, os pais pareciam quase alegres.
Antes de adormecer, Sadako só conseguiu fazer uma grua. Seiscentas e quarenta e quatro… Seria a última.


Correr tão veloz como o vento


Enquanto enfraquecia a olhos vistos, Sadako pensava cada vez mais na morte. Será que iria viver numa montanha celeste? Será que morrer doía? Será que apenas adormecíamos?
“Se ao menos pudesse deixar de pensar na morte”, disse Sadako para consigo mesma. Mas isso seria como impedir a chuva de cair. A menina não conseguia concentrar-se em nada muito tempo seguido: a morte vinha-lhe constantemente à ideia.
Em meados de Outubro, Sadako começou a perder a noção do tempo. Quando acordou uma manhã, viu a mãe a chorar.
— Não chores, peço-te.
Sadako gostaria de a reconfortar, mas não conseguia mexer nem a boca nem a língua. Uma lágrima deslizou-lhe pela face. A família sofria tanto por sua causa! Talvez bastasse dobrar mais algumas gruas e esperar por um milagre? Ainda pegou num quadrado de papel, mas os seus dedos inchados já não conseguiam fazer nada. “Sou mesmo uma tartaruga. Nem um pássaro consigo fazer.” Sadako tentou dobrar o papel, antes de desfalecer.
Alguns minutos, que pareceram horas, mais tarde, o Dr. Numata entrou e pôs-lhe a mão na testa. Tirou-lhe o papel das mãos com cuidado. Sadako já quase não o ouviu dizer:
— Tens de descansar. Amanhã continuas.
A menina disse que sim com a cabeça. Amanhã…Como amanhã vem longe…
Quando acordou, a família estava reunida em volta dela. Sadako sorriu‑lhes. Sentia que fazia e faria sempre parte daquele círculo cheio de amor e carinho, e que isso nunca iria alterar-se. De repente, começou a ver luzes a dançar diante dos olhos. Estendeu uma mão trémula em direcção à grua dourada. As forças fugiam-lhe, mas o pássaro de papel transmitia-lhe uma grande energia.
Sadako ergueu os olhos para todas as gruas suspensas do tecto. Nesse mesmo instante, uma ligeira brisa de Outono fê-los ondular. Pareciam vivas e dir-se-ia que queriam sair pela janela. Que beleza! Que liberdade! Sadako suspirou e fechou os olhos.
Para não mais os abrir.

Epílogo

Sadako Sasaki morreu a 25 de Outubro de 1955. Os seus colegas de turma dobraram trezentas e cinquenta e seis gruas para que ela fosse enterrada com mil pássaros. O seu desejo de viver longamente foi assim, de alguma forma, realizado, uma vez que viverá para sempre no coração de todos.
Depois das exéquias, a Turma Bambu publicou um livro com as cartas de Sadako, e intitularam-no Kokeshi, em memória da boneca que lhe tinham oferecido no hospital. O livro viajou por todo o Japão e celebrizou a história de Sadako e dos mil pássaros de papel. Os seus amigos sonhavam construir um monumento que eternizasse a memória de Sadako e de todas as crianças mortas pela bomba atómica. Jovens de todo o país uniram esforços e ajudaram-nos a recolher fundos para esse projecto. Em 1958, o seu sonho tornou-se realidade: no Parque da Paz, em Hiroshima, foi descerrada uma estátua de Sadako, que aparece no topo de uma montanha celeste em granito, com uma grua de ouro nas mãos.
Um clube de gruas feitas em origami foi fundado em sua honra e, todos os anos, no dia 6 de Agosto, os seus membros depõem junto da estátua milhares de gruas em papel. Nesse dia, o Dia da Paz, aproveitam para formular um desejo. Esse desejo encontra-se gravado na base da estátua:

Eis o nosso clamor
Eis a nossa prece
Para construir a paz no mundo.


Eleanor Coerr
Les mille oiseaux de Sadako

Toulouse, Éditions Milan, 2003

Texto publicado sob autorização do blogue Caminhos para a paz