quinta-feira

A violência no mundo moderno - IV - Friedrich Hacker

Friedrich Hacker
Agressividade – a violência do mundo moderno
Lisboa, Livraria Bertrand, 1972
(excertos)



CALLEY: «TU MATARÁS»

É indubitável que os motivos que habitualmente condicionam os assassinos não são suficientes para explicar as suas atitudes. Não agiu por perversão pessoal, a menos que se catalogue como perversa a autorização do direito colectivo de matar em tempo de guerra para derramamento de sangue sem respeito por quaisquer regras. O exército elevara-o à posição de poder aniquilar todo o ser humano que não usasse o mesmo uniforme que ele e de não se preocupar com as consequências da opinião pública, que, durante anos seguidos, nunca levantou a questão de se no Vietname se abatiam não só soldados mas também civis. Tinham-lhe, todavia, inculcado regras selectivas em relação aos homens a abater e foram estas mesmas regras que ele visivelmente infringira; se tivesse morto um camarada ou um superior, não se iria desculpar com o pretexto de que a guerra era uma escola de brutalidade e de desprezo pela vida humana.

É certo que ele não foi total nem plenamente responsável pelos seus actos e, principalmente, -não foi o único responsável; outros que não foram acusados também são culpados e partilham a sua responsabilidade sem que, todavia, o declarem inocente por esse motivo.

O caso Calley tornou-se um dos grandes processos criminais, como, por exemplo, o de Manson. Os dois veredictos foram acidentalmente pronunciados no mesmo dia e acusa-se a imaginação deformada e pretensamente anti-americana dos jornalistas americanos de terem ligado os dois julgamentos. As analogias não se limitam, porém, às aparências, podendo citar-se, entre outros, a estatura extraordinariamente pequena dos dois acusados. Manson e Calley eram, em todos os aspectos, pequenas personagens consideradas pouco dotadas e que passaram despercebidas no meio a que pertenciam, até que as suas ignomínias chamaram a atenção da opinião pública mundial. Os dois reclamaram para si o papel de demiurgos e arrogaram-se o direito de vida ou de morte sobre outrem entregando-se a carnificinas. Após vários meses de processos, os dois foram declarados culpados de massacres, mas as suas motivações e acções eram completamente diferentes (Manson nunca participou na execução dos assassínios). O presidente americano interveio nos dois processos num sentido diametralmente oposto, mas numa base igual.

A raiva popular desencadeia-se contra os actos de Manson como contra a condenação de Calley. A mesma raiva popular que nunca pôde tolerar outro veredicto que não fosse a pena capital para o processo Manson exige a libertação de Calley (que se dispõe a publicar as suas memórias por algumas centenas de milhares de dólares). O presidente dos Estados Unidos não agiu, de forma alguma, comi propósitos de ordem política ao aceder à opinião popular. Pode-se dizer que agiu sinceramente e obede¬cendo ao que lhe ditava a consciência. O presidente só conhecia a separação de bem e mal tal como apresentados num bom filme. Devia, portanto, declarar Manson culpado, antes mesmo que os juizes decidissem. Foram os mesmos esquemas dos filmes do Oeste que o levaram a acudir em auxílio de Calley, o xerife, o bravo soldado que o seu uniforme americano designava como o campeão da boa causa, da causa justa, da «nossa» causa. Era preciso livrá-lo, a partir do momento em que o júri o considerou culpado.

Todos os anos se realiza a distribuição do Óscar de ouro para o melhor actor, a melhor encenação, etc. Em Abril de 1971 é galardoado um filme de guerra com oito primeiros prémios. O herói era Patton, o general da Segunda Guerra Mundial, bem conhecido pela sua dureza e brutalidade, que mata publicamente um soldado que desobedece às suas ordens. Numa cena memorável do filme, Patton grita, por entre o ruído das bombas, das explosões e de horríveis destruições: «Que Deus me ajude; gosto deste espectáculo!»

No decurso do processo Manson, Susan Atkins, um dos membros da «família», inicialmente testemunha principal e, mais tarde, co-ré do mesmo processo, foi acusada pelo procurador-geral devido à irónica indiferença que manifestou para com as sete vítimas do massacre, o que revelou a sua insensibilidade moral. Ela retorquiu que ele próprio e a sociedade americana pouco se preocupavam com o milhão de vítimas vietnamitas. O facto não fazia, no entanto, parte do processo de Manson nem do de Calley. Susan foi severamente repreendida e, depois, levada para fora da sala. Os mortos de guerra não são mortos civis e os mortos de cor não são mortos brancos. Só os parentes e, sobretudo, as mulheres nada compreendem dessa distinção, da mesma forma que pouco se preocupam em saber o motivo por que amam os que são massacrados; a única coisa que lhes interessa é que se mata e que não se pára de matar.

Para os patriotas e fanáticos, pelo contrário, sobretudo quando usam uniforme e desfilam em paradas, tudo é diferente, excepto as motivações em relação às quais se sentem plenamente convencidos. Não amam a violência em si, mas só porque através dela esperam conseguir a vitória, o aniquilamento total do adversário e, simultaneamente, a supressão do mal universal, a afirmação dos seus propósitos morais e a sua afirmação pelo sucesso que os dispensa de toda a autocrítica e acarretará, natu¬ralmente, outros sucessos. Só uma propaganda inimiga, pensam eles, denuncia os bravos americanos, que se tornariam, de súbito, os responsáveis por todos os horrores, ao passo que eles mesmos sabem que são pessoas dignas e bons cidadãos, respeitadores da pátria e da honra, preocupados com a protecção das mães e dos filhos, mas obrigados, por isso mesmo, a matar cegamente as mães e os filhos dos outros.

Os Americanos, como todos os outros povos, desejam acima de tudo a proclamação de legitimação muito mais que da violência. Só a violência é a consequência necessária e previsível de legitimação anterior ou simultânea de todos os meios em nome da defesa de bens supremos e ao serviço de objectivos superiores que tudo santificam.


Continuação: A violência no mundo moderno V