quinta-feira

A violência no mundo moderno - III - Friedrich Hacker

Friedrich Hacker
Agressividade – a violência do mundo moderno
Lisboa, Livraria Bertrand, 1972
(excertos)




CALLEY: «TU MATARÁS» INÍCIO do artigo


O corajoso advogado geral militar Aubry Daniel III, descendente de uma família aristocrática do Sul, escreveu ao presidente dos Estados Unidos uma carta, respeitosa mas firme, tendo enviado uma cópia a seis senadores pertencentes aos partidos republicano e democrático. Nela acusa a intervenção, sem precedentes, do presidente no processo em curso. Aos olhos do advogado geral, o apoio que a opinião pública e o presidente conferem a Calley é revoltante, dado que nenhum põe em dúvida a culpabilidade de Calley e é, portanto, exigido um veredicto de não culpabilidade. Esta legitimação de Calley não era compatível com a pretensão dos Estados Unidos a serem uma nação civilizada. Daniel qualificou My Lay como uma data trágica na história da nação. Para ele, o aspecto da tragédia reside no facto de que «considerações de ordem política vieram comprometer princípios éticos tão fundamentais como a implícita ilegalidade do assassínio de inocentes». Quanto às declarações do presidente americano, poderiam reunir-se num grito: «Fora o árbitro!» O vice-presidente, Spiro Agnew comparou My Lay, e todo o processo jurídico, a uma competição desportiva e aos comentários trocados, em seguida, à volta de uma garrafa. Nessa altura é fácil, mas bastante injusto, o que se possa dizer relativamente ao que fizeram os jogadores. Ora o exército, ao condenar o tenente Calley, aderira à estrita aplicação das normas de guerra que ele mesmo fixara. O presidente e a maioria da opinião pública acusaram-no, a partir de então, de agredir e martirizar o violador das regras que agira em legítima defesa e ao serviço de uma causa justa. Os testemunhos, provas e confissões não impediram que este esquema superficial se sobrepusesse à verdade.

O exército pouco se preocupa, na generalidade, com a autocrítica. Dado que a sua missão é a luta, a justiça não constitui a sua maior preocupação. Neste ponto de vista o vice-presidente tinha, indubitavelmente, razão. É difícil pedir ao exército que sirva de árbitro à sua própria causa. Cabe-lhe formar os civis dentro de uma obediência e execução das acções de combate que lhe estão implícitas e, evidentemente, também lhe compete a utilização da violência. Todo o exército luta pela civilização com a ajuda de meios por vezes bárbaros, sem o confessar abertamente, e até mesmo dissimulando o facto. Desde sempre que os exércitos cometeram crueldades, mas só as do adversário são comunicadas ao público. Dado que o exército, como o establishment, fora decretado como inimigo anónimo de todo o sentimento humano, cabia-lhe prescrever uma estratégia de violências contra a população civil e encobrir, por espírito de camaradagem, ocasionais transgressões às regras estabelecidas ou a simples e estrita aplicação das prescrições; era seu dever impedir que tais processos fossem divulgados. Que outra coisa se poderia esperar? Porquê a imposição ao exército de julgar o caso Calley?

Actualmente, a nação americana demonstra uma surpreendente unanimidade de recusa em relação ao veredicto que condena Calley, mas não consegue deglutir o problema da sua responsabilidade. Para não sufocar, necessita de substituir esta ou aquela imagem de Épinal.

Aos olhos dos que se consideram cem por cento patriotas, Calley é um herói e um mártir, um corajoso combatente que arriscou a sua vida para preservar a da nação; foi escolhido para porta-bandeira por uma camarilha de oficiais ambiciosos. Na guerra tudo é permitido, dizem eles; no ardor do combate não pode nem deve existir um regulamento pormenorizado; tanto a nossa boa causa como a causa negativa do adversário desculpam, de antemão, toda e qualquer forma de comportamento. Ninguém deveria dar-se ao luxo de criticar a acção de combatentes traumatizados pela morte de um camarada. Deixar a cada indivíduo a liberdade de decidir se deve ou não obedecer às ordens significa o mesmo que matar o exército. Todos os soldados cometem, sem hesitação nem arrependimento, actos semelhantes aos de Calley ou ainda piores. Se o tenente é culpado, todos os combatentes, desde a mais ínfima das patentes ao comandante-chefe, o são igualmente, o mesmo se aplicando aos detentores de poder civis, quer dizer: o povo americano, que tão energicamente se decidiu a defender e apoiar Calley.

Aos olhos dos pacifistas liberais, Calley não passa de um sintoma e de um símbolo. O seu caso é apenas uma prova retumbante dos homens de guerra e, sobretudo, desta guerra infernal do Vietname, dirigida contra uma população civil praticamente indefesa. Por razões directamente inversas, os opositores da guerra concordam com os patriotas ao declarar que os massacres de My Lay não constituem actos isolados de oficiais criminosos e loucos, mas factos vulgares na guerra. É também aos dirigentes, à autoridade suprema, que cabe pronunciar-se sobre o assunto. Nem Calley nem qualquer outro subalterno são culpados. A culpabilidade deve atribuir-se a todos os que ordenam, perpetuam e toleram o derramamento de sangue. É assim que uns acusam os que fazem a guerra e a condenam, enquanto outros condenam os que acusam a guerra: só se demonstram solidários na compaixão que revelam por este massacre.

A verdade é que os factos existem e enquanto não forem reduzidos ao esquecimento, ou transformados em esquemas simplistas, os dois partidos vão ver-se em sérias dificuldades para conciliar, de forma convincente, os seus pontos de vista com a lógica e a moral, se é que, aliás, se preocupam com isso. Eles pouco ligam à verdade objectiva e só lhes importa o triunfo de uma causa que consideram indiscutivelmente justa e verdadeira: a sua. Parece ter-se esquecido bem depressa que Calley não teve de responder pelos seus actos ante hippies cabeludos. Existe uma propaganda desenfreada que agracia o júri de Calley com ofensas geralmente reservadas a essa categoria de pessoas. Os que tiraram conclusões sobre o assassínio premeditado nem sequer eram simples cidadãos e juizes vulgares, mas seis experimentados oficiais de carreira, de entre os quais cinco tinham combatido no Vietname e aí recebido ferimentos de gravidade. Só o sexto oficial, o coronel a quem cabia a presidência do júri, não possuía a experiência da guerra do Vietname, mas era um combatente da Segunda Guerra Mundial e regressara da Coreia coberto de condecorações. Ainda que, no decurso do processo, a defesa não tivesse continuamente invocado as ordens recebidas e a legítima defesa frente a uma população civil hostil, bem como a psicologia de uma guerra como aquela, estes experimentados juízes militares não podiam ignorar que Calley estivera no Vietname, não por sua decisão voluntária, mas por obediência a ordens, e que era detentor do uniforme americano.

Calley não foi acusado nem condenado por ter cumprido o seu dever, mas por ter transgredido e violado: no caso de Calley não estava em causa uma acusação de ter faltado ao dever, proclamado como princípio solene quando do processo de Nuremberga, que se refere ao dever individual de revolta contra uma ordem desumana. Calley foi considerado culpado por ter abatido sem ter recebido ordens, por iniciativa pessoal e sem (necessidade militar, vinte e dois civis desarmados, quer por suas próprias mãos quer por intermédio dos seus subalternos, agindo por sua expressa ordem. Um tal comportamento é há muito tempo estritamente proibido segundo as regras internacionais de guerra. Já o era muito antes do processo de Nuremberga. Calley violou princípios universais, ele mesmo o confessou, e ainda que lhe sejam concedidas atenuantes, só uma designação se lhe adequara de criminoso.

Continuação: A violência no mundo moderno IV