segunda-feira

História de Robert - Jean-Pierre Guéno


Nasci no dia 11 de Novembro de 1929, onze anos após o dia oficial do fim da Primeira Guerra Mundial. A Segunda Guerra Mundial foi declarada quando eu ainda não tinha 10 anos e morava na cidade de Metz com os meus pais polacos, os meus dois irmãos e a minha irmã. O meu pai era caixeiro-viajante e a minha mãe cuidava dos quatro filhos. Em Metz, o nosso apartamento de cinco divisões não ficava situado no bairro judeu. Sempre que os habitantes de Metz falavam deste bairro, faziam-no de forma negativa.

Quando voltava de viagem, o meu pai trazia-nos drageias de chocolate Meunier. Curiosamente, não guardo nenhuma lembrança de gestos de ternura por parte da minha mãe. Não a revejo a inclinar-se para mim, não a revejo a dar-me alguma coisa, nem a partilhar comigo aqueles segredos que as mães partilham com os filhos. Mas sei que fui muito amado.

Em Outubro de 1939, Metz foi evacuada e toda a comunidade judaica, os praticantes e aqueles que não o eram, partiram. Embarcaram todos no mesmo comboio e cada um recebeu um queijo camembert e 5 francos. Passámos por Paris para irmos para La Rochelle. A nossa família reencontrou‑se em Royan, onde ficámos onze meses. Depois da chegada dos alemães em Junho de 1940, fui tradutor nos grandes armazéns da cidade. Um dia, um nazi magro de óculos e rosto emaciado perguntou-me «onde tinha aprendido alemão». Respondi-lhe que era loreno. Ele disse-me: — És judeu.

Fugi e fiquei com muito medo.

Num outro dia, a polícia francesa disse-nos, como a todas as famílias judaicas da cidade, para juntarmos as nossas coisas e irmos para a estação. Fomos agrupados com outros judeus e enviados para a Dordogne com termo de residência.

A nossa família foi alojada numa quinta abandonada desde 1914, sem água, sem electricidade, sem casa de banho.

Recordo-me de ter vivido nesta aldeia da Dordogne os dois anos mais belos da minha infância, a partir de Outubro de 1940. Descobria a natureza, os animais, a vida simples. A água do poço estava sempre fresca e límpida. Pouco a pouco, o meu pai tornou-se camponês. Começou a revolver a terra diante da casa, plantou batatas, cenouras e alhos franceses. Eu ia à escola e ajudava-o na quinta. Havia árvores de fruto, flores, lilases; havia galinhas, patos e gansos a esgaravatar… Os meus pais eram pouco praticantes, mas rezavam.

A partir de 1942, era preciso usar a estrela amarela… À excepção de duas raparigas que me perguntaram «o que os judeus tinham vindo cá fazer», a estrela não causava nenhuma reacção nos camponeses ou nos seus filhos. Muitos não compreendiam o que se passava. Nós morávamos dois quilómetros a norte da linha de demarcação[1]. Numa noite de Outubro de 1942, às duas da manhã, a polícia veio dizer-nos que tínhamos três horas para prepararmos as nossas trouxas e que uma camioneta viria buscar-nos. Todas as famílias judaicas foram exemplarmente dóceis.

Chegados a Angoulême, juntaram 400 pessoas numa grande sala cujo chão estava coberto de palha. Ficámos ali quatro ou cinco dias. Alemães vestidos à civil recolhiam diariamente as nossas jóias, o nosso dinheiro, os nossos documentos, as nossas senhas de racionamento.

Uma noite, os alemães informaram-nos de que as crianças que tinham sido declaradas francesas deveriam ser separadas das outras na manhã do dia seguinte. Eu era o único da minha família nessa situação. O meu pai entregou-‑me um porta-moedas com o seu relógio de bolso, o relógio da minha mãe, as alianças deles, o canivete e todo o dinheiro que tinha com ele: 700 francos.

Chegou a manhã da separação. Éramos uma dezena de crianças de nacionalidade francesa. Curiosamente, os meus pais não tinham declarado os meus irmãos e irmã, que, ao que parece, não podiam ser salvos… Quis voltar para o meu pai, mas um tipo trajado à civil que gritava muito alto deu-me um violento pontapé no traseiro e disse: — Fica aí, porco judeu!

O meu pai chorava. Abriu os braços para mim… Gritou: — Robert, nunca te esqueças de que és judeu…

E eu comecei a rir. Porque nunca tinha visto o meu pai a chorar… Porque não me sentia nada bem… Hoje, sei que era um riso nervoso, mas sempre me perguntei se o meu pai teria visto aquele riso e percebido que não era bem um riso. E esta pergunta persegue-me. Pergunto-me que imagem guardou ele de mim… E a minha pergunta nunca terá resposta. Eu tinha treze anos. A minha irmã oito, os meus irmãos, quatro e seis anos. E nunca mais voltei a ver o meu pai, a minha mãe, a minha irmã ou os meus irmãozinhos.

Ainda conservo os 700 francos do meu pai; nunca lhes toquei. As duas alianças dos meus pais serviram para o meu casamento e, quando as coisas não correm bem, olho para a da minha mãe. Guardei o porta-moedas, mas há vinte e cinco anos que não o abro. Tenho a fotografia dos meus pais no dia do casamento e uma foto de passe do meu pai na época em que nos separámos. Ele tinha 49 anos… Mas não tenho nenhuma recordação da cara da minha mãe nessa altura.

Um pároco olhava pelas dez crianças que, como eu, tinham sido separadas dos pais. Recordo-me da minha pergunta: — Mas por que é que nos levam? Quando é que vamos voltar a vê-los?
E o pároco dizia-nos: — Vocês voltarão a vê-los, não se preocupem. Agora vão comigo porque me pediram que vos alojasse…

Fomos então com ele. Era um padre que se ocupava de casos sociais, de crianças cuja mãe falecera, ou cujo pai estava preso: crianças, todas elas, com histórias familiares difíceis. Tínhamos entre os 4 e os 15 anos.

Lembro-me de uma longa caminhada para chegarmos a umas barracas nos subúrbios de Angoulême. Levávamos as nossas roupas numa carreta. Eu andava com um saco às costas e guardava no bolso o porta‑moedas do meu pai. Lembro-me de um conjunto de barracas que parecia um campo, onde havia irmãs trajadas à civil. O padre Le Bideau mostrou-nos o lugar onde íamos dormir e, de seguida, encontrámo-nos no refeitório. Recordo uma cena engraçada quando todas as crianças se levantaram à chegada do padre. Devíamos ser uns cinquenta ou sessenta e ouvi: «Bom dia, meu pai![2]». Virei-me e disse para comigo: «Mas o que é que o meu pai tem a ver com isto?» Nunca tinha frequentado ambientes cristãos… Tínhamos de rezar antes das refeições e levantávamo‑nos todos de manhã à mesma hora, para irmos à missa numa pequena capela improvisada.

Um dia, recebi uma carta dos meus pais. Já não tinha notícias deles há um mês… Na carta, que me entregaram já aberta, a minha mãe manifestava a sua indignação: Robert! Como é possível? Deixámos-te dinheiro, estamos aqui neste campo, a passar fome (era em Drancy[3]), mandei-te três cartas com três vales de encomendas! Os teus irmãos não têm que comer. Choram todo o dia. Porque é que não nos mandaste as encomendas com o dinheiro que o teu pai te deixou? Uma carta atroz. E no mesmo envelope vinha uma borboleta dactilografada: Partiram para endereço desconhecido, não enviar nem cartas, nem encomendas. Lembro-me de que senti algo em mim, como quando vamos vomitar. Como se o sangue deixasse de afluir à cabeça. Pus-me a gritar com o padre Le Bideau:

— Porque é que não me entregou as cartas e os vales? Tem consciência do que fez?

E ele disse-me:

— Mas nós nunca recebemos essas cartas.

Penso que ele não estava a dizer-me a verdade… Ainda hoje o responsabilizo por isso. Nas quarenta e oito horas seguintes fiquei com icterícia. Passei quase três semanas sem comer. Foi um grande choque. Recebi, pouco tempo depois, uma última carta da minha mãe: era um pequenino cartão de visita num envelope. Ela tinha-o atirado de um vagão, e alguém o tinha apanhado e posto no correio… Neste cartão tinha escrito com uma letra minúscula: Boubi, com a ajuda de Deus, espero que voltemos a ver-nos em breve. Não sabemos para onde vamos. Estamos com saúde, esperamos reencontrar-nos em breve. Depois disto, nunca mais recebi nada.

O padre fazia-nos participar cada vez mais na vida religiosa da colectividade, até ao dia em que pegou em nós, nas dez crianças judias, e nos obrigou a confessar-nos. Fiquei em pânico…

Entre as coisas que o meu pai me tinha confiado, estava a morada do rabino Bloch, o famoso rabino que tinha organizado a nossa partida de Metz, e que era o que os rabinos costumam ser nas pequenas comunidades: um verdadeiro deus que tudo conseguia, tudo sabia, que para tudo tinha resposta… O meu pai tinha-me dito:

— No dia em que alguma coisa não correr bem, escreve ao rabino.

Escrevi então ao rabino Bloch, que morava em Poitiers. Quarenta e oito horas depois, chegou a secretária dele e levou-nos a todos, às dez crianças judias. Fomos para Poitiers e distribuíram-nos por famílias judias.

Mandaram-me para uma primeira família em Châtellerault. Fiquei lá relativamente pouco tempo, porque era muito infeliz. No entanto, eram pessoas óptimas, que me acolheram muito cordialmente. Mas o filho deles não suportou a minha presença. Obrigou-me a dormir no chão, escondeu as minhas coisas, disse-me que fizera chichi na minha escova de dentes… Escrevi imediatamente ao rabino Bloch, dizendo-lhe que não podia ficar mais nessa família e que, se não viessem buscar-me, não sabia o que poderia acontecer-me. Quarenta oito horas depois, chegava a secretária, que me tirou daquela casa e me levou para outra família judia da qual o marido tinha sido levado, ao sair de casa, por não trazer a estrela. A senhora era cardíaca, uma pessoa extraordinária, muito calorosa, mas entrevada. Era uma das famílias mais ricas de Châtellerault, uma família de peleiros, com muitos criados. Fiquei lá com outra criança, Eva Nadel.

Estávamos no Paraíso… Pus-me a estudar como um louco e a fazer os trabalhos de casa para recuperar o tempo perdido. No espaço de dois meses, acho que avancei dois anos. Era amigo de um outro rapaz judeu. Levávamos a estrela quando íamos para o liceu e vivemos juntos uma cena absolutamente incrível. Havia uma praça em Châtellerault que os judeus não podiam atravessar; para irmos para o liceu, tínhamos de fazer um desvio enorme, porque o liceu ficava do outro lado… Ficávamos muitas vezes num dos passeios em frente à praça e olhávamos para os carrocéis, encostados à montra de uma confeitaria… Um dia, passa uma senhora com um rapazinho, entra na confeitaria, sai e faz-nos sinal para a seguirmos…

Seguimo-la: levou-nos até uma ruela e deu um bolinho a cada um, dizendo:

— Comam depressa e deitem fora os papéis.

Ficámos tão estupefactos que nem lhe agradecemos. Só depois é que corri atrás dela para lhe agradecer…

Fiquei em Châtellerault, nesta segunda família, durante seis meses. Um dia, a polícia francesa veio buscar todas as crianças cujos pais tinham sido deportados, e transferiram-nas para o campo de Poitiers. Era um campo de reagrupamento… Passámos lá uns dias totalmente surpreendentes: éramos cerca de sessenta crianças judias que vinham de toda a parte… Nunca como naquele lugar brinquei tanto com os meus pequenos companheiros. Dormíamos em barracas imensas; comíamos muito mal, mas a Cruz Vermelha enviou-nos uns pacotes, nomeadamente, um barril de bombons. Estes bombons, sem papel, estavam todos colados uns aos outros. No princípio, conseguíamos raspá-los e comê-los; juntávamo-nos à volta do barril; mas, no fim, era preciso ir para dentro dele a fim de chegar aos do fundo. Recordo-me de ter entrado na pipa e de não ter conseguido sair até me puxarem pelos pés.

Juntaram-nos, de novo, alguns dias depois; meteram-nos em comboios e mandaram-nos para Paris, onde fomos acolhidos por responsáveis da UGIF[4]. Todo o grupo foi levado para um lar de crianças, em Lamarck. A rua Lamarck era óptima. É um facto que nos raparam o cabelo porque tínhamos piolhos, mas comia-se maravilhosamente bem; e a disciplina não era muito severa… Encontrei lá amigos da minha idade que tinha conhecido na Dordogne. Fiquei três ou quatro dias. Em seguida, como tinha mais de 13 anos, tive de partir, e mandaram-me para a escola profissional, no nº 4 bis, da rua de Rosiers. Guardo desta escola uma recordação horrível. Fui muito infeliz lá. Era um dos mais novos e os meus congéneres eram todos casos sociais. Alguns tinham roubado, outros tinham grandes dificuldades familiares. Juntavam assim os jovens a quem não sabiam o que fazer…

De manhã, havia aulas do curso geral e, de tarde, ensino profissional. Eu tinha escolhido a carpintaria. Vivi neste lar onde não havia calor humano algum, onde estavam sempre a ameaçar-nos que nos batiam e que iam deportar-nos…

Saí em 1944, nove meses mais tarde. Aprendi a lutar pela minha comida e pelo meu pão… Era uma luta permanente… A recordação que guardo deste período é a de uma espécie de nó no estômago, de um enorme vazio afectivo e de um sentimento de insegurança permanente.

Em Fevereiro de 1944, um senhor misterioso que pertencia a uma rede clandestina tomou conta de mim. Tinha marcado encontro comigo num outro lar de crianças e disse-me:

— Já não voltas à escola profissional; é demasiado perigoso. Vais sair do circuito judeu, mudar de nome, ter novas senhas de racionamento e estudar. Mas, durante algum tempo, virei visitar-te regularmente para te informar do que vai acontecer-te.

Era um lar de crianças protestantes de que não guardo nenhuma recordação em particular… Comia-se bem, lavavam a nossa roupa. Fiquei um mês. Um belo dia, o mesmo senhor voltou e disse-me:

— Vens comigo, vou levar-te para uma nova escola, mas é preciso que saibas desde já que não te chamas Robert Frank, mas Robert François, e que nasceste em tal dia e em tal sítio.

Explicou-me que era uma câmara cujos arquivos tinham sido destruídos pelos bombardeamentos…

Não deveria dizer a ninguém o meu verdadeiro nome…

Entrei para o Instituto Voltaire.

Fui acolhido pela Sra. Vallon, a directora, juntamente com um outro rapaz judeu, também escondido. Quem tomou conta de nós foi uma organização clandestina, dirigida pelo doutor Milhaud e a mulher, que conseguiu salvar uma dezena de crianças que estavam comigo na escola…

A Sra. Vallon tomou-nos sob a sua protecção. Como era a directora da instituição, fomos normalmente às aulas até à Libertação. Em casa dela, continuei a chamar-me Robert François: não digo que ela tenha sido uma substituta da minha mãe, mas foi uma mulher de quem gostei muito; tinha um excelente coração; ligou-se muito a nós, e vivi com Georges Miliband em casa dela, como se fôssemos dois irmãos. Estávamos sob a sua protecção, ela velava por nós.

Tinha uma casa em Raincy onde organizava colónias de férias. Georges tinha-lhe sido confiado em Julho de 1942 para participar numa dessas colónias. De volta a Paris no final de Julho, não conseguiu encontrar a mãe e as duas irmãs, presas na altura do Vel d’Hiv[5]. O pai dele tinha morrido antes da guerra. Foi então que a Sra. Vallon o acolheu. Eu não saberia dizer quantas crianças judias lhe passaram clandestinamente pelas mãos; corria um enorme risco, e fazia-o de forma totalmente consciente…

Para mim, o facto de ter um nome que não era o meu foi, no início, uma espécie de jogo. Não sendo Robert Frank mas Robert François, achava que conseguiria esconder-me facilmente, que conseguiria esconder o que era, ou seja, mascarar as minhas dificuldades, a minha angústia, o meu vazio afectivo em relação aos outros. Este período não me permitiu, de forma alguma, expandir-me, mas apenas preservar-me tal como queria ser, Robert Frank, ou seja, o filho do meu pai e da minha mãe, guardando para mim a minha história dolorosa… Nunca falei disso na altura, e a minha máscara deu-me uma espécie de força, que perdi após a Libertação, sobretudo depois do fim da guerra, em 1945, quando foi necessário retomarmos os nossos verdadeiros nomes e ir à estação de Est acolher os que regressavam.

Foi aí que voltei a sentir esperança: voltava a ser Robert Frank; esperava por Max Frank, o meu pai, Betty Frank, a minha mãe, e pelos meus irmãos e irmã… Não sabia o que lhes tinha acontecido. Não se sabia nada de Auschwitz[6], dos fornos crematórios… E eu esperava, ia à estação e dizia para mim próprio: «Um dia destes, vou vê-los chegar.»

Para mim, eles eram apenas prisioneiros. E os primeiros deportados chegaram… Foi então que a espera se tornou angustiante. Um dia, vi chegar Sylvain Kaufman, que vinha de Auschwitz. Era o filho do patrão do meu pai em Metz e conhecia toda a minha família. Não sei o que fez em Auschwitz, nem procurei saber, mas ele perguntou-me:

— Queres saber o que aconteceu à tua família?

Eu respondi:

— Claro que sim.

Disse-me que, à chegada, o meu pai tinha sido mandado para um lado e a minha mãe para outro. A minha mãe, os meus irmãos e irmã, foram directamente para a câmara de gás; o meu pai sobreviveu durante três meses, trabalhando arduamente. E um dia, como as suas pernas já não aguentavam, Sylvain Kaufman levou-o à câmara de gás juntamente com um grupo de pessoas… Não consegui acreditar nesta história; pensei que ele não queria dizer-me o quanto tinha sido mais terrível ainda. Não conseguia aceitar que eles tivessem morrido; conseguia aceitar a doença deles, o seu sofrimento, mas não o seu desaparecimento…

Muitos anos depois da guerra, eu ia ainda atrás de pessoas em quem pensava reconhecer o meu pai. O momento mais dramático, vivi-o em 1947, dois anos depois do fim da guerra, quando, tendo obtido o diploma da escola básica, a Sra. Vallon me disse:

— Como recompensa, vou oferecer-te uma viagem a Metz.

Era um desejo que eu tinha manifestado.

Fui a Metz sozinho, e dirigi-me à rua onde morávamos; vi o prédio, o apartamento no quarto andar, não me atrevi a subir; passeei nos lugares que me eram familiares; sem pensar, fui ter ao lugar onde moravam os melhores amigos dos meus pais, a família Wiederspiel. Vi o nome deles na campainha de um prédio; louco de felicidade, toquei, mas ninguém respondeu. Deviam ser três horas da tarde; disse para comigo: «Vou dar um passeio, de certeza que foram a qualquer lado, e venho tocar de vez em quando.» E fui dar uma volta. A dado momento, deparei com uma campainha com o nome Frank. Pareceu-me reconhecer a letra do meu pai. Fiquei possesso e disse para comigo: «Não é possível que ele tenha voltado e não me tenha procurado! Como é possível ter voltado a Metz e ter-me deixado sozinho?» Toquei; ninguém respondeu. Voltei ao edifício dos Wiederspiel. Abriram-me a porta. Reconheceram-me e levaram algum tempo a convencer-me de que os Frank do bairro não tinham nada a ver com a minha família…

Levei muitos e longos anos até ficar convencido do desaparecimento dos meus pais… E foi um sonho que me libertou. Em 1957, estava já casado, levantei-me da cama em sobressalto; acordei a minha mulher e disse-lhe: — Olha, acabei de enterrar os meus pais. Sonhei que estava em Festalemps, naquela aldeia onde vivemos juntos os últimos momentos, e no pátio, entre o portão e a quinta, vi cinco círculos, cinco grandes círculos, com uma cúpula por cima. E acordei nessa altura, dizendo a mim próprio: «O que quererá isto dizer?»

Compreendi que o número cinco representava o meu pai, a minha mãe, o meu irmão, o meu outro irmão e a minha irmã. Tinha sofrido muito por não ter um túmulo para eles. Para mim, Auschwitz não fazia sentido. Morrer nos fornos crematórios é partir em fumo, enquanto que, no meu sonho, os tinha colocado num lugar que me era querido… E isso libertou-me, fez-me bem, porque, de seguida, senti-me bem, distendido, até recomeçar a colocar-me outras questões.

Nos meses que se seguiram à guerra, tornei-me órfão de guerra; tomaram conta de mim financeiramente, a nível de alojamento, estudos, roupa. Materialmente, deixei de ter problemas. Restava o problema afectivo, bem mais difícil de aliviar…

Penso que a história dos filhos dos deportados traz consigo uma dor terrível. É dramático perder os pais; horrível perder os irmãos e as irmãs. Quando se perdem por doença, por acidente, é terrível. Mas perdê-los da forma como nós os perdemos, brutalmente, de um dia para outro, sem entender porquê nem como, sem certezas, é medonho. Já não tinha tios ou tias; sentia-me completamente só. Estava furioso com os meus pais. Primeiro, senti-me abandonado. Depois, senti-me culpado por estar vivo; restava-me acusá-los por me terem abandonado. Hoje, compreendo que era uma forma de me defender da dor da separação. Pouco a pouco, compreendi que eles não tinham culpa nenhuma. Quando retomei os estudos, fiquei durante muito tempo ensimesmado, sem falar, sem contactar com ninguém; sentia-me desinteressante, como alguém que não podia ser «reconhecido».

Passei os meus dois exames de admissão à Faculdade. Nunca fui um aluno brilhante mas consegui desenvencilhar-me. Decidi tornar-me médico. Na altura das inscrições, conheci um rapaz que me propôs, alguns meses mais tarde, trabalhar em parceria com ele. Pouco tempo depois, apresentou-me à mãe; disse-lhe que tinha estado em Châtellerault durante a guerra e ela contou-me então a seguinte história: — Um dia, em 1943, estava eu num passeio com o meu filho, quando vimos dois rapazes com a estrela de David. Entrei com o meu filho numa confeitaria, comprei alguns bolos e disse aos dois rapazes judeus que me seguissem e dei-lhes dois bolos…

A coincidência era impensável!... É claro que me tornei para ela mais um filho…

No final dos meus estudos, tornei-me dentista. Conheci a minha mulher em 1952 e casámos em 1954. Casei com uma mulher judia, psicóloga, e retomei, de alguma forma, uma vida em família.
Não posso dizer que seja uma pessoa fácil. Andei muito tempo deprimido, e ficava, por vezes, muitos dias sem abrir a boca, totalmente centrado em mim mesmo. Mas a minha mulher conseguiu fazer de mim aquilo que hoje sou. Quando me dizem demasiadas vezes que me amam, tenho alguma dificuldade de aceitar que isso seja verdade ou que tal se justifique. Além disso – e não estou agora a falar da minha mulher, falo sobretudo de todas as pessoas que me rodearam, que me ajudaram ou quiseram-me fazer bem – sempre tive um movimento de rejeição em relação às pessoas que foram boas comigo.

Hoje, sinto mágoa em relação a isso, porque foram pessoas que, espontaneamente, quiseram exprimir a sua compreensão e a sua afeição. Mas bastava que isso fosse um pouco em demasia para me tornar agressivo e me retirar, cortando qualquer relação.

Outras crianças escondidas conheceram as mesmas dificuldades: logo que alguém nos dava amor, logo que isso se tornava demasiado forte, a nossa forma de reagir era a ruptura. E a ruptura total. Evidentemente que hoje me penalizo muito por isso, mas é já demasiado tarde.

Tive duas filhas maravilhosas com a minha mulher; durante muito tempo, pouco falei com elas; é escasso o que sabem a respeito do meu passado; apenas os grandes momentos, os momentos importantes…

O meu sofrimento actual é de uma outra ordem. Tento imaginar o que os meus pais terão sentido antes de morrer… Não me atrevi, durante muito tempo, a imaginar aquilo que a minha família terá passado depois de nos termos separado. Tentei imaginar como teriam vivido a viagem até Auschwitz, através de tudo o que li sobre estes comboios e a descida dos vagões. Sei que estavam todos vivos quando desceram. Imagino os gritos dos SS[7] e a cara da minha mãe, dos meus irmãos e da minha irmã; estava frio; era em Novembro de 1942. Imagino os cães, os uivos, a selecção. «Tu, para ali! Tu, para acolá!» Creio que o meu pai já não devia pensar muito em mim naquela altura, ao ver a mulher e os filhos ali, do outro lado. Imagino-os a despir-se. Imagino os meus irmãos e a minha irmã de pé, nus, indo para o duche. Vi o filme Shoah, vi como contaram as diferentes etapas, imaginei o meu pai nas barracas onde a mulher e os filhos desapareceram; é tenebroso. Imagino-o a trabalhar. Imagino-o a dizer para si mesmo: «Para quem, para quê?» Talvez para mim, Robert… Imagino-o a morrer de fome, de frio. Um dia, não se aguentando mais de pé, vejo-o a ser levado num carrinho de mão, não consigo imaginar os golpes, vejo-o, sabendo onde vai; é tudo. E tudo isto é novo. Neste momento, recordo esta trajectória quase todas as noites.

Robert

Jean-Pierre Guéno
Les enfants du silence. Mémoires d’enfants cachés 1939-1945
Toulouse, Ed. Milan, 2003
texto traduzido e adaptado

[1] Até Novembro de 1942, esta linha – que ia de Bayonne à Suiça – dividia a França livre, onde se exercia a autoridade do governo de Vichy, da França ocupada pelos Alemães. Só podia ser atravessada com uma autorização das autoridades alemãs. Em Novembro de 1942, os Alemães invadiram a «zona livre»…

[2] Em francês, no original, père tanto significa pai como padre. Apesar de não ser tão frequente, é também possível chamar-se pai a um padre, em português. Por isso, a opção tradutiva respeita a duplicidade do vocábulo. (N.T.)

[3] Campo de internamento do governo de Vichy que funcionou como principal ponto de partida para os campos de concentração nazis: 67 dos 79 comboios de deportados judeus partirão de Drancy, cujo sobrenome era «antecâmara da morte».

[4] A Union générale des israélites de France foi um organismo criado pelo governo de Vichy, sob pressão dos nazis, para reagrupar numa única organização as obras de ajuda e assistência aos judeus.

[5] Abreviatura de Vélodrome d’Hiver, um estádio de competições de ciclismo, usado pela polícia francesa para juntar os 12 884 judeus presos na noite de 16 de Julho de 1942, em Paris e na região parisiense, e depois conduzidos para os campos de Drancy, Pithiviers e Beaune-la-Rolande, antes de serem deportados para Auschwitz.

[6] O mais conhecido dos campos de concentração criados pelos nazis, localizado a 60 Km de Cracóvia, na Polónia, e aberto em Junho de 1940. Três milhões de pessoas morreram aí: dois milhões e meio gaseadas e 500 000 de fome ou esgotamento. A partir de 1942, as câmaras de gás chegaram a matar 6000 pessoas por dia, essencialmente judeus.

[7] Abreviatura de Schutzstaffel: secção de protecção. Na origem, a guarda pessoal de Hitler; depois, tropas de elite fanáticas, dedicadas à guarda dos campos, ao extermínio e à «depuração» praticados pelo exército alemão.