quinta-feira

Campos de lágrimas - J. J. Letria

A VIAGEM E A MEMÓRIA


Francisco nada quis deixar ao acaso na preparação daquela viagem de Verão. Fazendo-a, queria festejar o 14.° aniversário de Sofia, a filha mais velha, e ter uma oportunidade de falar com ela e com João, o filho, sobre a Europa, sobre a paz e sobre a guerra e ainda sobre a memória muito longínqua de um avô que não chegara a conhecer o que sempre fora uma referência de dignidade e de coragem para a sua família.
O avô fora sempre um homem de sonhos e de ideias. Tinha combatido do lado republicano na Guerra Civil de Espanha. Derrotados os republicanos pelas tropas do general Franco, que contava com o apoio dos fascistas de Itália, Alemanha e Portugal, partiu para França, onde acabou por ser capturado pela Gestapo, polícia política do Partido Nazi, e levado para um campo de concentração, onde acabou por morrer. As últimas notícias que os seus pais tiveram dele davam-no como prisioneiro no campo de Buchenwald, na Turíngia, Alemanha, embora nunca se tenha encontrado registo que confirmasse a sua morte naquele local de horror e miséria humana. Queriam agora reencontrar o espaço que evocasse a sua memória.
— É preciso irmos tão longe só para podermos falar do que foi a guerra? — perguntou Sofia ao pai no dia em que ele anunciou o programa da viagem. E o pai respondeu-lhe:
— É preciso irmos até onde as coisas aconteceram para sentirmos melhor o seu significado e as suas causas.
Como Sofia e João gostavam muito de viajar, não viram qualquer inconveniente na escolha e até demonstraram grande entusiasmo por terem a possibilidade de, no recomeço das aulas, poderem falar aos colegas e amigos de uma experiência que, por certo, nenhum outro teria tido até esse momento. Joana, a mulher de Francisco, apoiou-o desde o princípio na opção que fizera. Iriam visitar, na Alemanha, um local que trazia à família memórias pouco agradáveis, mas que seria um pretexto para falarem de assuntos importantes para quem estava a crescer e se esforçava por compreender o mundo em toda a sua complexidade. A de ontem e a de hoje.
Em finais de Agosto apanharam, em Lisboa, um avião para Frankfurt e depois seguiram de comboio até Weimar, uma cidade famosa na história cultural da Europa. Apesar de ser uma cidade pequena, ainda hoje com cerca de 50 mil habitantes, nela viveram e escreveram grandes escritores como Goethe e Schiller, considerados dos maiores poetas e dramaturgos de toda a história da literatura ocidental.
Durante a viagem de comboio a caminho de Weimar, Sofia e João não escondiam a curiosidade e o interesse por aquilo que iam visitar. Da história do século XX ainda sabiam muito pouco, mas tinham vontade de saber muito mais, principalmente acerca daquele bisavô de quem já tinham ouvido falar muitas vezes com muito respeito e admiração e do qual se sabia pouco. Algumas fotografias já amarelecidas pelo tempo mostravam-no em plena juventude, ao ar livre, vestindo roupa leve e deixando que o sorriso confiante deixasse transparecer tudo aquilo que esperava da vida e toda a esperança que tinha no futuro do mundo. Infelizmente, não viveu o tempo suficiente para ver confirmado nada daquilo com que sonhara, mas ficara a sua memória para mostrar que não fora em vão o seu esforço e o seu sacrifício. A memória tem essa vantagem.
Ao chegar à estação de Weimar, a família juntou as bagagens e preparou-se para apanhar um táxi que a levasse até um hotel no centro da cidade, instalado numa velha casa recuperada. Nessa casa, segundo informação que Francisco obteve num folheto fornecido pela agência de viagens, vivera um nome importante da cultura alemã. Era apenas uma das muitas casas com história e memória cultural, numa cidade por onde passaram, onde viveram e trabalharam escritores, cientistas, dramaturgos e pintores e onde nasceram também algumas das piores formas de terror praticadas pelos nazis durante os anos trinta e até 1945. Era a esta estação de caminhos-de-ferro — explicou Francisco à mulher e aos filhos — que chegavam os prisioneiros que depois eram transportados para o campo de concentração de Buchenwald, que fica apenas a oito quilómetros da cidade.
— Então as pessoas viam e não faziam nada? — quis saber Sofia.
— Tanto quanto se sabe — disse o pai — parece que, era de facto, assim, e esse foi um dos grandes problemas desses anos de terror. É que muita gente sabia o tipo de crimes que se cometiam e nada fazia para os evitar.
— Devia ser terrível — comentou a mãe,
— Eu nem quero acreditar que isso pudesse acontecer — acrescentou João.
— De facto — declarou Francisco — pelo menos aqui em Weimar, os prisioneiros, fossem eles judeus, políticos, ciganos ou outros, desembarcavam na estação de caminhos-de-ferro da cidade, pois não havia linha férrea até ao campo de concentração, onde muitos milhares acabaram os seus dias no meio do maior sofrimento físico e moral.
— Mas é terrível pensar — comentou Sofia — que perto de uma cidade onde se fez tanta cultura também foi possível cometer tantos crimes.
— Tens razão, Sofia — respondeu o pai — e não podemos deixar de relacionar uma coisa com outra e de fazer esta pergunta: como foi possível ter, de um lado, a memória de homens como Goethe, um escritor que sempre defendeu a liberdade, e, do outro, a mais terrível falta de respeito pelos seres humanos e pelos seus direitos.
— Nós, se tivéssemos vivido nessa altura, também cá podíamos ter vindo parar? — perguntou João, tentando disfarçar o arrepio que lhe percorreu a espinha.
— Não é muito provável — respondeu o pai — porque não somos judeus, porque não pertencemos a um país que os nazis tenham ocupado e porque nessa época não devíamos ter nenhuma actividade que nos pusesse em risco. De qualquer modo, nunca se sabe, e o melhor é pensarmos sempre que o pior pode voltar a acontecer, se as pessoas, onde quer que estejam e façam o que fizerem na vida, não lutarem pela defesa da liberdade e dos direitos dos seres humanos
— E pensarmos nós que o nosso bisavô veio para aqui, que desembarcou na mesma estação em que nós desembarcámos e que pode ter morrido no campo de concentração que nós vamos visitar!
Francisco teve dificuldade em acrescentar o que quer que fosse às palavras da filha, pois também ele, nesse momento, pensava nessa repetição de itinerários, em condições tão diferentes e com quase sessenta anos de intervalo. Teve a tentação de imaginar o avô numa longa fila de homens e mulheres magros e tristes, alinhados sob a ameaça das armas dos soldados, que não hesitavam em matar quem tentasse fugir, ou mesmo quem se limitasse a protestar contra a forma como estavam a ser tratados, mas evitou fazê-lo, guardando as emoções maiores, as mais intensas, para a visita que iriam fazer, com tempo, ao campo de concentração de Buchenwald.


O LUGAR DO HORROR

Francisco, a mulher e os filhos chegaram ao campo de Buchenwald na manhã seguinte, com tempo suficiente para verem tudo com atenção. Como guia para a visita coube-lhes uma jovem de origem judaica, vinda de um país da América Latina. Tiveram sorte porque ela falava espanhol e assim Sofia e João eram capazes de perceber o fundamental das explicações. Ficaram impressionados com o aspecto exterior do campo, com os seus edifícios sombrios, com a pequena torre do relógio que devia marcar o momento em que o tempo parava para todos quantos ali entravam e com o profundo silêncio que envolvia o local, interrompido aqui e acolá por um riso de criança ou pelo canto de um pássaro.
O campo, foi-lhes explicado, abriu as suas portas em Julho de 1937. Junto do campo foram construídos vários edifícios para instalar os homens das SS, tropa de choque do regime nazi e de muitos dos seus dirigentes.
No princípio, antes do começo da Segunda Guerra Mundial, foram para ali levados presos políticos, criminosos de delito comum e testemunhas de Jeová. A primeira grande onda de judeus, as principais vítimas do terror dos campos, chegaria em meados de 1938. Eram cerca de 13 mil e vinham de vários pontos da Alemanha e também da Áustria, que entretanto Hitler, que era austríaco, mandara anexar à Alemanha, fazendo-a deixar de existir como país independente e soberano.
— A primeira medida que os carrascos adoptavam — explicou Iolanda, a guia da visita — era a eliminação de qualquer elemento ou aspecto que garantisse a individualidade ou personalidade dos detidos As pessoas deixavam de ser conhecidas pelos nomes e pelas nacionalidades e passavam a ser conhecidas apenas pelos números que lhes eram atribuídos e pelos triângulos coloridos que lhes eram colocados nos fardamentos e que correspondiam aos “crimes” que era suposto terem cometido. Essa humilhação começava, aliás, dentro dos vagões que os levavam até à estrada de Weimar. Eram obrigadas a viajar amontoadas durante dias, sem quaisquer condições de higiene, como se fossem cabeças de gado. Tudo isto como se fossem autores de crimes graves.
— E que crimes eram esses? — quis saber Sofia.
— Na verdade — respondeu Iolanda — não eram crimes. O seu crime era serem judeus, comunistas ou socialistas, ciganos, homossexuais ou testemunhas de Jeová. Só por isso teriam que ser presos ou destruídos fisicamente. E entre os presos políticos havia muitas pessoas que tinham combatido na Guerra Civil de Espanha e em França, logo no princípio da Segunda Guerra Mundial.
Ao ouvirem estas palavras, Francisco e a família não puderam deixar de sentir um sobressalto, recordando-se do familiar que supunham ter perdido naquele campo de horror.
— Os guardas dos campos — continuou Iolanda — usavam todos os mesmos métodos, tentando torná-los iguais pela fome, pela humilhação, pela pancada, pela tortura e pelo medo e pela falta de condições mínimas de higiene. Desse modo transformavam, ou, pelo menos, tentavam transformar seres humanos em animais. Para que o terror não tivesse pausas, os prisioneiros eram constantemente chamados para a parada do campo, muitas vezes com temperaturas negativas, para se proceder à sua contagem e recontagem. Isso tanto podia acontecer a meio do dia como durante a madrugada. No princípio, Buchenwald destinava-se a funcionar como um campo de trabalhos forcados, mas, na realidade, era um campo de extermínio.
Sofia e João chamaram a atenção do pai para o contraste que havia entre as condições de vida dentro das vedações electrificadas do campo e os edifícios onde viviam as SS. E foi Sofia que reparou numa pequena gruta com uma entrada protegida por um gradeamento de jaula, perguntando à guia do que se tratava.
— Aqui — explicou Iolanda — funcionava um jardim zoológico mandado construir por um dos comandantes do campo. Tinha várias espécies animais e servia para os filhos dos guardas e das tropas das SS se divertirem, vendo os ursos, os veados, as raposas e outros animais, que eram excepcionalmente bem tratados e bem alimentados.
— Certamente muito melhor que os prisioneiros — comentou Francisco.
— Claro que sim! — confirmou Iolanda — porque era disso mesmo que se tratava: dava-se aos animais melhor tratamento que aos humanos para os humilhar ainda mais. Sabe-se mesmo que, um dia, o comandante do campo mandou castigar dois soldados por terem tratado mal um veado do jardim zoológico.
O número de detidos no campo nunca parou de aumentar, até atingir cerca de 110 mil (85 mil homens e 25 mil mulheres) em 1945. Ao todo terão morrido no campo quase 60 mil pessoas de várias nacionalidades, entre as quais portugueses. Quando as tropas norte-americanas ali chegaram a 11 de Abril de 1945, ainda havia no campo 21 mil prisioneiros, muitos dos quais morreram nos dias seguintes, de tal modo grave era o seu estado de saúde, sempre agravado por epidemias, subnutrição e terríveis experiências médicas feitas pelos nazis. À medida que se iam aproximando as forças dos Aliados, os carrascos aumentaram o ritmo da destruição dos detidos. Nos primeiros meses de 1945 foram assassinadas 13 mil pessoas.
— Uma das experiências mais terríveis aqui realizadas — contou Iolanda, incapaz de disfarçar a emoção que continuava a sentir, apesar de realizar aquele trabalho diariamente — foi a de se concentrarem 100 pessoas dentro de uma vedação, deixando-as morrer à fome e à sede para os médicos poderem observar os diferentes graus de resistência, consoante a idade, a raça c o estado de saúde. Também havia crianças nesse grupo mártir e sabe-se que, no máximo, os últimos conseguiram viver 18 dias ao frio, sem qualquer tipo de alimento. E esta foi apenas uma das numerosas experiências médicas que foram feitas neste campo. Muitas dessas experiências eram subsidiadas por uma grande empresa de produtos farmacêuticos alemã, a IG Farben.
Além de serem humilhados, torturados e assassinados, os prisioneiros serviam também de cobaias para terríveis experiências médicas. Alguns sobreviveram, mas ficaram fisicamente destruídos para o resto das suas vidas.
Joana não conseguiu conter as lágrimas. Sofia e João abraçaram a mãe, sentindo uma emoção igual à sua e sobretudo o peso desta terrível pergunta: como é possível que seres humanos de um país civilizado e culto façam isto a outros seres humanos?
— Que tipo de alimentação tinham os prisioneiros? — perguntou Francisco a Iolanda.
— Inicialmente, recebiam por dia entre 300 a 500 gramas de pão e um litro de sopa, muitas vezes azeda. Na fase final, a ração não ultrapassava 100 ou 200 gramas de pão e cerca de meio litro de sopa, que não passava de um caldo aquoso do qual eram retiradas as couves e as batatas. Por isso, quase todos os detidos sofriam de graves problemas intestinais. Mesmo subnutridos, eram obrigados a trabalhar durante 10 horas e mais, por dia, como animais de carga. Ao fim de cada jornada de trabalho, muitos já não regressavam aos abarracamentos, derrotados pela fadiga e pela doença.
Francisco, por mais que tentasse, não conseguia deixar de imaginar o avô no meio de todo aquele horror, tentando sobreviver, muito magro e angustiado. Era a paga que tinha por ter passado a vida toda a lutar pela liberdade e pela tolerância, primeiro em Portugal, depois em Espanha e, por último, em França.
Um dos momentos mais dramáticos da visita ao campo, num belíssimo dia de sol, com a floresta em redor mostrando as suas cores mais vivas e contrastantes, foi o da passagem pela zona dos fornos crematórios, pela sala das experiências médicas e pela cave onde se fuzilavam prisioneiros. Francisco hesitou quanto ao interesse e à oportunidade de deixar Sofia e João entrarem naqueles locais, mas a verdade é que, se estavam ali, com a memória do seu avô tão presente, deveriam ver tudo, sem nada ficar escondido ou esquecido. Nos grupos de visitantes de outros países também havia adolescentes, e Francisco percebeu que alguns deles pertenciam a famílias cuja história também tinha passado, mais de 50 anos antes, por aquele local de horror ilimitado.
Durante a visita só se ouvia a voz da guia e as perguntas feitas, num quase sussuro, pelos visitantes. Tudo o mais era recolhimento e comoção. Não fazia qualquer sentido que ali houvesse comentários ou pessoas a conversar fora dos grupos organizados. As pessoas estavam naquele local a lidar com os mais terríveis sinais da tragédia humana e encontravam-se, sem excepção, à beira das lágrimas, sentindo também uma grande revolta e repetindo sem cessar a pergunta: como podem seres humanos ter feito isto a outros seres humanos? Cada um teria que encontrar a sua resposta ou ficar apenas com a tristeza da pergunta.
Quando saíam da zona dos fornos crematórios, passou por eles um grupo de jovens alemães falando e rindo alto. Todos ficaram indignados.
— São alemães, não são? Como podem proceder aqui desta maneira? — perguntou um francês de meia-idade que seguia integrado no grupo. E Iolanda respondeu:
— Esse é um dos grandes problemas da Alemanha de hoje. É que há pessoas em Weimar e noutros cantos do país que continuam a dizer que foi tudo mentira e que os campos foram uma mera invenção dos Aliados. Muitas outras pessoas, conscientes da responsabilidade da Alemanha, entendem que isto não só aconteceu, como deve ser mostrado ao mundo para que não se repita. E, depois, há grupos de jovens neonazis que dizem que, de facto, houve os campos de concentração e que ainda bem que houve, pois podem ainda servir para se meterem lá os emigrantes turcos e de outras nacionalidades. Isso é terrível. Estes jovens que aqui passaram a rir e a falar em voz alta devem ser dos que pensam dessa maneira.
Todos ouviram com verdadeira estupefacção estas palavras, não querendo acreditar que, perante os testemunhos vivos do horror, algum ser humano possa pensar ou proceder dessa maneira.
Já no final da visita, os elementos do grupo, onde havia pessoas de várias nacionalidades, concentraram-se junto de uma placa de homenagem às vítimas do terror nazi. Era uma placa metálica incrustada numa outra mais larga feita de granito. Nela liam-se somente as nacionalidades das vítimas. Uma delas era a portuguesa. Em redor da placa havia dezenas de ramos de flores. Sofia perguntou ao pai se podia depositar ali o ramo de dálias que tinham comprado numa florista à saída do hotel. O pai respondeu-lhe que sim e ela acocorou-se junto da placa e deixou ali as flores. Segundo o pai lhe dissera, eram as predilectas do seu bisavô.
Nessa altura, Iolanda disse aos membros do grupo:
— Se quiserem prestar uma última homenagem às vítimas deste campo de concentração, por favor ponham a palma da mão sobre a placa metálica. As pessoas formaram uma pequena fila e corresponderam à sugestão.
— Quando tocarem na placa, perceberão a mensagem final do campo de Buchenwald.
Sofia escondeu a estranheza que sentia, dizendo para o pai:
— A placa está morna. Parece que tem alguma coisa lá dentro a aquecê-la.
Iolanda, sensibilizada com a reacção da jovem visitante, explicou:
— É precisamente essa mensagem que nós queremos que tu leves daqui.
Esta placa metálica que homenageia todos aqueles que aqui morreram, tem uma temperatura constante de 37 graus centígrados.
— Mas porquê essa temperatura? — quis saber Sofia.
— Porque é a temperatura do corpo humano e isso é que nos torna a todos iguais. Podemos falar línguas diferentes, ter diferentes grupos sanguíneos, vir de vários continentes e ter diferentes cores de pele. Mas uma coisa é certa: todos temos uma temperatura média do corpo igual a esta e é isso que também nos define como seres humanos. Se nos lembrarmos sempre desta mensagem, nunca deixaremos que nada se sobreponha à nossa condição de humanos.
As palavras de Iolanda foram muito mais do que a grande lição daquele dia de Agosto, numa visita ao campo de concentração de Buchenwald. Foram a lição de uma vida, daquelas que o tempo nunca apaga na memória.


WEIMAR: ENTRE A CULTURA E O TERROR

No dia seguinte, por mais que se falasse de grandes escritores como Goethe ou Schiller, nomes sem os quais não pode ser contada a história de Weimar, não saíam da cabeça de Sofia e de João as palavras de Iolanda sobre o campo de concentração que tanta impressão lhes causara. Contudo, evitaram falar do assunto, já que o programa estabelecido pelo pai previa que visitassem a cidade, com tempo e com paciência para aprenderem coisas novas sobre os movimentos artísticos que ali tinham nascido ou desenvolvido.
Todos acharam a cidade bonita, limpa, monumental, apesar da sua dimensão reduzida, e ficaram espantados com o facto de quase em cada esquina existir uma estátua de um escritor, de um músico ou de um poeta famoso. Era como se todos os génios de várias épocas tivessem feito questão de passar por Weimar ou de ali viver. Aquela pequena cidade alemã do Estado da Turíngia mais parecia um museu vivo, uma enciclopédia que, aberta numa página ao acaso, teria sempre revelações surpreendentes para fazer.
Quando, passeando despreocupadamente a conversar e a comer gelados, passaram perto da estação da cidade, fez-se um grande silêncio. Não puderam deixar de se lembrar das palavras da guia de Buchenwald quando lhes explicou que, durante bastante tempo, era ali que os presos era desembarcados e encaminhados para o campo de concentração, e deviam ser muito poucas as pessoas na cidade que desconheciam o seu trágico destino antes e durante a Segunda Guerra Mundial.
Decidiram, porém, não falar do assunto, pois iriam ter muito tempo para reflectir sobre ele quando voltassem a Portugal. O problema é que a visão do campo teimava em não lhes sair do espírito.
Durante todo o dia ninguém falou de Buchenwald, mas as imagens trágicas da visita feita na véspera não saíam da memória da família, porque, ao recordarem-nas, pensavam, inevitavelmente, no parente chegado que ali tinha acabado os seus dias de forma trágica.
Durante o jantar, Sofia, sempre com grande perspicácia, perguntou aos pais:
— Como é possível que quase ao lado de uma cidade toda ela feita de cultura tenha existido um campo de concentração onde morreu tanta gente inocente?
— Essa — disse a mãe — é uma pergunta para a qual é muito difícil encontrar uma resposta aceitável. A cultura deve tornar as pessoas mais sensíveis e mais humanas e, por isso, não faz muito sentido esta vizinhança.
E o pai, que há muito tempo reflectia sobre o assunto, acrescentou:
— Quem tem que tornar a vida dos seres humanos melhor não é a cultura, é o próprio ser humano, e o ser humano é uma criatura muito complexa, capaz de fazer as coisas mais belas e geniais e, ao mesmo tempo, as coisas mais terríveis e brutais. É assim mesmo a natureza humana. Weimar e Buchenwald são um bom exemplo dessa grande contradição.
— Mas há uma coisa que eu ainda não consegui perceber — disse João. — Que mal fizeram, afinal, aquelas pessoas para serem tratadas como foram e morrerem como morreram?
— Essa — respondeu o pai — é outra das perguntas para as quais não é fácil encontrar resposta satisfatória. Em primeiro lugar, nenhuma delas cometeu crimes de qualquer espécie. O único “crime” que podem ter cometido foi o de serem diferentes, o de serem judeus, ciganos ou apenas homens e mulheres que lutavam pela liberdade contra a tirania.
— Mas isso, que eu saiba, não foi nem nunca pode ser considerado um crime — observou Sofia.
— Claro que não! — concordou a mãe.— Isso só pode ser entendido como um crime quando estão no poder loucos e criminosos, que foi o que aconteceu aqui na Alemanha entre 1933 e 1945. Foram 12 anos de grande sofrimento para milhares de pessoas.
— E os que viviam aqui nesta cidade não podiam fazer nada para evitar que isto acontecesse? — quis saber João.
— A esta distância — explicou o pai — tudo parece muito simples e até podemos pensar que as respostas que damos são as mais correctas e definitivas. Mas o problema é que tem que se ver o que aconteceu, à luz da maneira como os alemães pensavam nessa época. Eles tinham sido derrotados e humilhados na Primeira Grande Guerra e Hitler e os nazis prometeram devolver ao país a grandeza e a glória perdidas.
— Mesmo assim... — limitou-se Sofia a comentar, insatisfeita com a resposta.
— Tens toda a razão em fazer esse comentário, porque não há nada que explique o silêncio cúmplice de grande parte de um povo ao ver assassinar milhares de pessoas da mesma nacionalidade e de outras nacionalidades sem razão aparente. E a verdade é que houve muitos milhares de alemães que colaboraram dia a dia com esta máquina de terror e destruição.
— Como, pai? — perguntou João.
— Tínhamos combinado que hoje não voltávamos a este assunto, mas já que estamos a falar nele, não vale a pena adiar a resposta. Calcula-se que cerca de 100 mil alemães podem ter estado ligados a esta indústria de terror, mesmo não sendo militares.
— Se não eram militares, o que é que faziam nos campos de concentração? — quis saber Sofia.
— Uns eram guardas dos campos, e os guardas eram homens e mulheres. Depois, havia gente que trabalhava nas fábricas onde se faziam os produtos usados para assassinar pessoas nos campos e, espero que não se impressionem com o que vos vou dizer: havia muitos homens e mulheres em fábricas e oficinas a fazer travesseiros e cabeleiras postiças com os cabelos que eram cortados rentes àqueles que entravam nos campos, e havia ainda muita gente a negociar com esta mão-de-obra que não custava nada e que dava muito lucro. Isso acontece nos países onde havia campos, e eles existiam na Alemanha, na Polónia, na Checoslováquia e outros mais pequenos nos vários países e os nazis ocupavam. No fundo, existia uma verdadeira economia do horror a girar à volta desta máquina de torturar e de matar. Ainda hoje é difícil percebermos como tudo isto foi possível.
Sofia mordeu o lábio, revoltada com o que acabara de ouvir, e depois perguntou ao pai:
— E as pessoas aqui desta cidade não faziam nada para ajudar os presos?
— Não — respondeu Francisco. — Que se saiba, não faziam. Mantinham aquilo a que eu chamei um silêncio cúmplice. Claro que havia pessoas que não concordavam, mas, se o dissessem publicamente, podiam acabar os seus dias num campo ou noutra qualquer prisão do regime de Hitler. Parece também que muita gente tirava vantagens da proximidade do campo.
— Mas como? — perguntou o João.
— Utilizavam os presos e presas como jardineiros, como cozinheiras, “como costureiras e até como amas de crianças, não pagando nada pelo serviço, ou pagando alguma coisa aos guardas do campo que alinhavam neste tipo de negócio e que até enriqueciam à custa dele.
— Que horror! — exclamou Sofia.
Francisco achou que seria melhor, pelo menos naquela noite, pôr um ponto final no assunto, mas os filhos insistiram para que ele o não fizesse porque queriam saber mais e, sobretudo, conhecer melhor os culpados e a lógica de um terror que não conseguiam justificar.
— Os piores campos — explicou o pai — eram aqueles que existiam sobretudo para matar os prisioneiros. O maior e o pior de todos foi o de Auschwitz, na Polónia. Foi ali que se internaram mais pessoas e que mais pessoas foram mortas. Era um campo enorme. Embora fosse um campo de extermínio, foi, durante quase todo o tempo em que funcionou, um campo de trabalho. Subalimentadas e gravemente doentes, as pessoas, independentemente da idade, tinham que produzir, tinham que render como animais de carga. Ninguém respeitava a sua dignidade nem a sua identidade, e era por isso que eram tratadas somente pelos números que lhes eram tatuados na pele da parte interior do antebraço. Os trabalhos mais pesados e mais brutais estavam reservados para elas, porque era como se tivessem escrito na testa a palavra “culpado”.Embora ninguém soubesse ao certo qual era a natureza dessa culpa. E todos morreram sem resposta para esta pergunta.
— E só judeus terão sido seis milhões a morrer nos vários campos de concentração — acrescentou a mãe, sugerindo que, depois de um dia tão cansativo, fossem todos dormir. A conversa, tão terrível como interessante, podia continuar no dia seguinte.
Antes de adormecer. João olhou para a janela e pareceu-lhe ver uma lágrima muito brilhante a deslizar pela face da lua. Talvez fosse uma lágrima de tristeza por todos os inocentes mortos nos campos de concentração ao longo daqueles anos.

UMA HISTÓRIA PARA LEMBRAR E PARA CONTAR

Os dias de férias que ainda lhes restavam na Alemanha foram reservados para conhecerem melhor Weimar e a região da Turíngia. Visitaram museus e exposições, almoçaram em esplanadas escutando música de qualidade a ser tocada ao ar livre e compraram presentes para trazerem aos amigos, desde as tradicionais canecas de cerveja trabalhadas e pintadas à mão, até caixas de bombons com os rostos de Mozart, Beethoven e Bach pintados nas capas.
Francisco contou aos filhos tudo o que sabia sobre a literatura e a música alemãs, numa linguagem adequada às suas idades e ficou disponível para conversar sobre todos os assuntos que lhes interessassem. Porém, o que continuava a suscitar sempre novas perguntas eram os campos de concentração. Não se lhes podia censurar essa curiosidade.
Sofia, numa dessas conversas, lembrou-se do nome de Anne Frank e do facto de ela e a irmã terem morrido num campo de concentração.
— Tens razão, Sofia — confirmou a mãe — Anne Frank, de quem tu já leste o diário, morreu no campo de concentração de Bergen-Belsen, depois de ter passado dois anos num sótão de Amesterdão, cidade para onde a sua família, que era alemã, fugiu para escapar à perseguição dos nazis. Se tivesse conseguido resistir um pouco mais, teria sido libertada e talvez tivesse feito a grande carreira de escritora com que tanto sonhou enquanto escrevia os seus textos sem poder fazer barulho para que a família e as outras pessoas que viviam naquele espaço apertado e quase irrespirável não fossem denunciadas à Gestapo.
O pai aproveitou então para explicar que, para além de Buchenwalde, Auschwitz, de que já tinham falado, existiram outros campos igualmente terríveis, citando Dachau, Mauthausen, Treblinka, Maidanek, Chelmno, Ravensbruck e Sachesenhausen, ficando muito longe de esgotar a lista.
Nesses campos foram assassinados, desde meados dos anos trinta e até praticamente ao fim da guerra, em 1945, milhões de judeus, de ciganos, de comunistas, de socialistas, de padres, de testemunhas de Jeová e ainda dezenas de milhares de doentes mentais. A cada um destes grupos correspondia uma estrela ou um pedaço de pano de outra forma, sempre com cores diferentes. A dos judeus era a amarela. Eles já sabiam que essa cor tinha, naquela situação, um significado trágico.
Quase ao mesmo tempo, João e Sofia perguntaram aos pais se foi logo no princípio da guerra que Hitler decidiu exterminar os judeus.
— Não — respondeu Francisco — embora já houvesse muitos internados nos campos, a sua eliminação sistemática começou em meados de 1941 e, no dia 20 de Janeiro de 1942, em Wannsee, nos arredores de Berlim, foi aprovado o que ficou tragicamente conhecido como “A Solução Final”, ou seja, o programa de extermínio em massa dos judeus.
— É então a isso que se chama Holocausto? — quis saber Sofia.
— Holocausto — respondeu Joana, tentando satisfazer a curiosidade da filha — quer dizer “sacrifício pelo fogo” e tornou-se uma expressão usada sobretudo pelos judeus norte-americanos. Há quem prefira chamar-lhe “genocídio; pois foi o extermínio sistemático de uma raça e há quem use o termo hebraico “shoah”, que é outra forma de dizer a mesma coisa, ou seja, de falar no genocídio.
— E porquê este ódio aos judeus? Que mal é que eles fizeram exactamente? — perguntou João, cada vez mais espantado com o absurdo de uma situação para a qual não conseguia encontrar uma explicação lógica. E Francisco respondeu-lhe:
— O ódio aos judeus não era uma coisa nova na Europa. Eles, historicamente, foram sempre vistos como responsáveis pela morte de Jesus Cristo. Essa perseguição que teve na Igreja Católica a sua principal base, manteve-se durante séculos. Os nazis retomaram-na com muito maior violência, tentando fazer dela uma causa nacional capaz de unir os alemães a quem tinha sido feita uma promessa de retorno à glória e à prosperidade.
Os principais inimigos públicos dos nazis eram os judeus e os comunistas e, à volta desse ódio, foi feita uma imensa campanha de propaganda para aumentar a intolerância e justificar o genocídio. Portanto, os judeus não eram culpados de nada em concreto. Eram apenas um pretexto para uma campanha de extermínio sem paralelo na história da Humanidade.
— Mas então — interrompeu João — os judeus não resistiram a essa perseguição?
— Houve muitos — explicou a mãe — que resistiram, integrando-se nos grupos de resistência e de guerrilha que se opunham ao terror nazi, mas não se pode falar de um exército clandestino judaico, organizado para o combate. Por exemplo, muitos dos judeus que resistiram ao terror eram comunistas, para além de serem judeus. Quanto aos campos de concentração, como já vos disse, não os vejam apenas como campos de extermínio, mas também como campos de trabalhos forçados que ajudavam a manter, sem quaisquer custos para os nazis, uma economia de guerra que tinha que produzir armamento e outros bens a um ritmo infernal.
Francisco aproveitou para falar aos filhos, de escritores importantes como o italiano Primo Levi, detido em Auschwitz, ou o espanhol Jorge Semprún, que sobreviveram e escreveram livros impressionantes dando testemunho do que foi essa experiência nas suas vidas de homens ainda muito jovens. Primo Levi acabou por se suicidar, já depois de ter completado 70 anos, por não poder continuar a viver com essa memória que nunca mais lhe deu paz.
Durante a conversa, que se prolongaria sobre o tema, já em Portugal, nas semanas seguintes, também se falou da existência de guetos como o de Varsóvia, onde viviam em condições inqualificáveis dezenas de milhares de judeus, completamente à margem do resto da sociedade. Aí chegou mesmo a haver uma revolta que os nazis conseguiram prontamente abafar.
Como tinham visto no cinema o filme de Steven Spielberg “A Lista de Schindler”, Sofia e João perguntaram aos pais se tinha havido mais pessoas a ajudarem os judeus a escapar ao seu destino trágico. O pai esclareceu-os:
— Houve muito mais pessoas do que se pode imaginar. Para além de Schindler, que o cinema tornou famoso, houve o sueco Raoul Wallenberg e muitos diplomatas, com destaque para o cônsul português Aristides de Sousa Mendes que, em Bordéus e Bayonne, conseguiu, contra a vontade de Salazar e do regime fascista em Portugal, emitir vistos que permitiram salvar a vida a mais de 30 mil judeus. Infelizmente, não há ainda um filme sobre esse herói português do século XX, que foi afastado da carreira diplomática e morreu na miséria em Portugal. Ele obedeceu à sua consciência de ser humano com regras morais e salvou milhares de vidas.
Essas pessoas que ajudaram a salvar milhares de judeus são hoje recordadas no museu Yad Vashem, também conhecido como Museu do Holocausto, em Jerusalém, onde cada uma delas é lembrada com uma árvore e com uma placa recordando o seu contributo para a salvação dos judeus.
Durante a conversa, a pergunta inevitável acabou por surgir:
— E não existe o perigo de uma coisa assim voltar a acontecer? Joana achou que esta poderia ser a melhor das respostas:
— Em princípio não voltará a acontecer, mas como o ser humano é complexo e difícil de prever, nunca se sabe e, por isso, o melhor é estar atento e evitar, por todos os meios ao nosso alcance, que uma situação tão trágica se repita. E há casos recentes preocupantes na ex-Jugoslávia, no Ruanda ou na perseguição ao povo curdo. Depois, há que pensar que existem muitos grupos de neonazis em vários pontos do mundo, a começar pela Alemanha, que admiram Hitler, a Cruz Suástica e as teorias do ódio racial.
Na Áustria, onde Hitler nasceu, há um partido que defende as suas ideias e que é chefiado por um tal Georg Haider. Já faz parte do governo, o que provocou uma forte e justa reacção da União Europeia, dos Estados Unidos e de Israel. Enquanto houver situações dessas, o perigo continuará a existir. Muitos desses grupos utilizam já hoje a Internet para divulgar as suas ideias e as suas acções.
Mesmo em França, existe um partido chamado Frente Nacional que defende ideias contra os estrangeiros que vivem e trabalham naquele país, muito parecidas com as dos nazis. Por isso, toda a vigilância é pouca, na escola, nos sítios onde trabalhamos ou nas cidades onde vivemos.
E também é bom não esquecer que os israelitas, herdeiros e descendentes dos judeus assassinados nos campos de concentração, têm utilizado com os palestinianos métodos que por vezes se assemelham aos que os nazis usaram contra o povo judeu, o que faz com que naquela zona do Médio Oriente se mantenha um clima de guerra que parece não ter fim à vista.
O que uns sofreram não pode justificar o mal que fazem aos outros. A vingança nunca é o caminho.
Tanto Francisco como Joana lembraram aos filhos que a primeira coisa que os nazis tiravam aos presos dos campos, antes mesmo da vida, era a dignidade humana, substituindo-lhes os nomes por números, rapando-os, separando pais de filhos, jovens de idosos, e enviando directamente para os campos de gás os considerados inaptos para o trabalho. Essa foi uma das maiores tragédias de toda a história da Humanidade e, seguramente, a vergonha maior do século XX.
Uma vergonha que ninguém pode ou deve esquecer, sob pena de permitir que ela se repita. Antes de deixarem Weimar, de comboio, rumo a Frankfurt, onde apanharam o avião de regresso a Lisboa, tiveram oportunidade de ver que num país onde a cultura nunca deixou de ter força e uma presença constante na vida das pessoas também houve lugar para o horror, para o extermínio e para a destruição física e moral de milhões de pessoas.
A ideia de terem perdido em Buchenwald alguém que a família nunca deixou de amar e de estimar fazia com que aquela terra distante onde trabalham muitos emigrantes portugueses passasse também a fazer parte das suas memórias e das suas vidas.
Sofia pediu ao pai que, no regresso, a deixasse ler as cartas do bisavô Francisco. E ele prometeu que o faria e que organizaria a sua vida para publicar o livro com essas cartas que tanto o tinham comovido. Tentaria honrar esse compromisso.
Sem se darem conta disso, Sofia e João voltaram mais crescidos e mais maduros daquela viagem de Verão, feita em nome da memória, no final de um século em que aconteceram coisas muito belas e outras assustadoras e tremendas.
Durante a viagem de regresso, o pai leu-lhes um fragmento de um poema escrito por um prisioneiro de um campo de concentração que dizia: Levantei a cabeça / as árvores estão em flor / pela primeira vez desde há trinta meses / chorei.Antes de partir, lembrando o avô e bisavô Francisco e a tragédia de Buchenwald, também eles, olhando as árvores floridas e as estátuas do poeta e ouvindo na rua a música de Mozart, tiveram também vontade de chorar, num misto de alegria e de tristeza que marcaria para sempre as suas vidas.
Quem visita um campo de lágrimas, mas que foi habitado por uma dor sem nome, passa a conhecer melhor a condição humana. As palavras da guia Iolanda nunca mais lhes saíram da cabeça, nem a placa com uma temperatura permanente de 37 graus, que é a do corpo humano, seja de que raça for. Aquela lição foi a maior das suas ainda curtas vidas.
Voltavam agora a Portugal com tanta coisa nova para contar e não iam faltar amigos para escutarem o relato da viagem. Ficou assente que iriam ver no cinema ou em vídeo o filme “A Vida é Bela” de Roberto Benigni, uma obra muito bela sobre os anos de tragédia e resistência, na Segunda Guerra Mundial.

Era uma vez um português que, por ter lutado pela liberdade, deixou a mulher e um filho pequeno e acabou por morrer num campo de horrores onde as pessoas eram conhecidas por números e sabiam que cada dia podia ser o último das suas amargas vidas...

Este bem podia ser, em poucas palavras, o princípio da história que traziam para contar. Uma história que se demora na memória como uma chama que o tempo e o vento não são capazes de apagar.


José Jorge Letria
Campos de Lágrimas
Porto, Ambar, 2001