segunda-feira

O soldadinho, a menina e a pomba - Leonel Neves


O soldado marchava de cá para lá, de lá para cá, na rua sem mais ninguém, diante da porta aberta do quartel. De farda especial e capacete, com a mão direita no punho da espingarda automática encostada ao braço, marchava vinte passos para lá; então parava, batendo com as botas no chão, para fazer meia-volta; e depois marchava vinte passos para cá, para fazer outra meia-volta e continuar a andar os mesmos vinte passos.

Estava de sentinela. De guarda ao quartel, era sua obrigação ver muito bem a entrada e a saída de militares e atender alguma pessoa estranha que por ali aparecesse.
Chegara no seu posto meia-hora antes, ainda quase de noite. Como então havia nevoeiro e muito frio, marchara muitas vezes de cá para lá, de lá para cá, batendo com as botas no chão, com muita força, para se aquecer. E, de vez em quando, metera-se dentro da guarita, aquela casota de madeira de onde, mais abrigado, podia continuar a ver tudo o que perto dele acontecesse. Dentro de nevoeiro, parado ou só podendo andar os tais vinte passos, o soldado fazia lembrar um peixe num aquário.

Agora lá andava ele, de um lado para o outro, diante da porta aberta do quartel, onde ninguém entrava e de onde ninguém saía. A rua estava deserta. Nem sequer o Sol, que decerto já tinha nascido, conseguira furar o nevoeiro que toda a noite tinha sido uma manta a embrulhar a cidade. Agora era como um lençol quase transparente, esburacado, mas ainda mal deixava ver muitas casas, algumas árvores e mesmo parte daquela rua.

Ora, a certa altura, o soldado ouviu um leve rumor e viu um pequeno vulto que se aproximava. Logo interrompeu a sua marcha, mesmo junto da guarita, e, com muita atenção, ficou a olhar e foi como se, de repente, a manhã tivesse finalmente começado a descer a larga rua do quartel. Uma menina de bibe branco, boina e sandálias vermelhas, com uma malinha às costas, vinha andando na direcção dele, pulando às vezes, às vezes parando; e, batendo as asas em volta dela, um pombo cinzento rosado, da cor da madrugada, vinha voando com a menina. Mas ela, após três ou quatro passos, parava: e o pombo, então, procurava-lhe as mãos, como se quisesse beijá-las. Assim de longe, lembrava uma borboleta a querer poisar numa flor que tivesse começado a andar.

O soldado estacara junto da guarita, imóvel, em posição de descanso, com as pernas afastadas, as mãos cruzadas à sua frente, a segurar o punho da espingarda automática que parecia agora adormecida ao colo dele.

Com a menina e o pombo já mais perto, percebia melhor o que estava acontecendo. A pequenita trazia nas mãos um cartucho, donde tirava bagos de milho que o pombo lhe ia comendo na palma da mão. E, de súbito, veio correndo até junto do soldado e parou diante dele, com a ave empoleirada num dos ombros. Então disse:

— Bom dia!

Antes de responder, ele descruzou as mãos e ficou com a direita caída a segurar a arma ao longo do braço, e a esquerda muito esticada junto à coxa, ao mesmo tempo que unia os calcanhares, com um grande estalo das botas. Estava em sentido. E ia falar, quando o pombo começou a esvoaçar e a menina a rir.

Devia ter uns sete ou oito anos, muito pequeninos e alegres. Alguns caracóis de cabelo negro escapavam-se da boina vermelha, sobre uns grandes e lindos olhos verdes, num rosto de ar travesso, com um sinalzinho preto à esquerda do nariz arrebitado. E toda ela, desde a boina à boca, ria.

— É por mim que fazes isso? — perguntou, com o pombo empoleirado no outro ombro.

— Uma sentinela deve pôr-se em sentido quando fala com um civil — respondeu o soldado.

— Ai, eu sou um civil — exclamou ela, ainda a rir. — Pois não vês que sou uma menina?

— Bem vejo que é uma menina. Deseja alguma coisa?

— Sim. Quero saber se viste passar o meu avô.

— O seu avô? Não, não vi. Desde que aqui estou, ninguém entrou nem saiu. E há quase meia hora que ninguém passa por esta rua.

— Então, não viste o meu avô? — murmurou a pequenita, muito desgostosa.

E, enquanto tirava do cartucho um bago de milho para o pombo, lamentou-se:

— Sem o meu avô não sei como hei-de resolver o meu problema. Tu é que talvez possas ajudar-me...

— A menina precisa de ajuda?

Ela fez uma careta de impaciência:

— Ai, não faças tanta cerimónia! Porque é que continuas em sentido e a tratar-me por menina? Olha, eu sou a Renata. E esta é a Rita, acrescentou, dando à pomba outro bago de milho. E tu?

— Eu sou o 154.

— O 154? Ora! Trata-me por tu e diz-me o teu nome.

— Ernesto. Na tropa sou o 154, mas chamo-me Ernesto. Mas como é que a menina...

— Como é que tu...

— Está bem! Como é que tu sabes que é uma pomba?

— Como é que eu sei! — exclamou a pequenita, abanando a cabeça. — Sei porque sou muito amiga dela, porque fui eu que lhe pus o nome de Rita, porque é minha vizinha e porque anda a chocar uns ovos que eu quase a vi pôr. E esse é que é o problema!

— Que problema?

Então a Renata explicou qual o problema, acrescentando que era grave. A Rita andava a chocar os seus ovos, em breve ia ser mãe e precisava de comer muito bem, para poder criar uns pombinhos fortes e bonitos como ela. Por isso, todas as manhãs, antes de ir para a escola, costumava dar-lhe milho. Mas naquele dia acordara mais tarde e tinha-se visto obrigada a trazer a pomba com ela, porque a Rita estava habituada a comer bagos, um a um e pouco a pouco, nas mãos da sua amiga Renata. Ora ela tinha de ir já para a escola e só metera por aquela rua para encontrar o avô, que tinha vindo para ali poder dar à pomba o resto do milho...

E, com um ar muito contrariado, concluiu:

— Mas tu dizes que não viste o meu avô... Portanto, como não vejo aqui mais ninguém, só tu é que podes ajudar-me.

— Eu? Tenho muito pena, mas não pode ser. Eu estou de sentinela.

— Já sei! Mas tu mesmo disseste que ninguém tem passado por aqui. Por isso, ninguém pode ver. E eu não conto nada. Olha que já faltam poucos bagos — disse a Renata, dando mais um à pomba que não ficava quieta.

— Tenho muito pena...

— Ernesto, Ernesto! — exclamou a menina, olhando-o com uma expressão muito triste. — Pareces um rapaz muito simpático, mas afinal...

Ele tinha, de facto, um aspecto muito simpático. Baixo, loiro, de olhos azuis, corado e quase imberbe, era naturalmente risonho. Mas agora estava preocupado.

— Não posso, Renata. Se alguém me visse... Se o nosso sargento me apanhasse...

A pomba continuava a bater as asas, à roda do cartucho. A menina, abanando a cabeça, murmurava:

— E eu tenho de ir já para a escola! Tu bem podias, se quisesses... E agora?

Foi então que, vendo que duas lágrimas o espreitavam daqueles grandes e lindos olhos verdes, o soldado não resistiu mais.

— Pronto! Dá cá o milho e vai depressa para a escola. Eu cá trato da Rita... e seja o que Deus quiser!

Como o Ernesto se inclinava para ela, para melhor agarrar o cartucho, a menina pendurou-se-lhe ao pescoço e deu-lhe um grande beijo, dizendo:

— Eu juro que não conto nada a ninguém. Só hei-de dizer ao meu avô que encontrei hoje um soldadinho muito bom e muito bonito. Adeus, amigo Ernesto!

E deixando a pomba a esvoaçar em volta da sentinela, a Renata desatou a correr a caminho da escola, sem olhar para trás, mesmo de costas acenando adeus.

Risonho e pensativo, o soldado ficou a ver a menina desaparecer. Mas a pomba picava-lhe a mão... Despertou e só então desfez a posição de sentido, passando à de descanso: com a espingarda automática ao colo, as pernas afastadas e as mãos à frente, amparando o punho da arma... mas abertas, uma com o cartucho, a outra com a pomba.

Olhou à sua volta: ninguém! Até o nevoeiro parecia voltar de novo, a querer ajudá-lo. E o Ernesto deu à Rita mais um bago de milho.

De repente, vindo do quartel, um som de clarim estilhaçou o silêncio. Estremeceu, mas logo se acalmou, pensando: «É o toque do rancho, para o pequeno-almoço. Agora não é provável que alguém venha à porta.»

Continuou a dar o milho à Rita, contando os bagos que restavam: eram três. Pô-los na concha da mão, deitando fora o cartucho, logo arrastado pelo vento que acordara e desfazia os últimos farrapos de nevoeiro. O sol ia já doirando as coisas. E, quando havia um só bago de milho, o soldadinho, muito distraído, pressentiu de repente alguém que vinha já muito perto dele. Ao perceber quem era, quase desmaiou.

Como estava inclinado para a pomba, ao princípio só viu, pisando o chão, um par de botins ou botas altas. «Oficial ou sargento?» — pensou. Eram botas altas: «Oficial!». Depois, nos ombros, muitos galões amarelos, um largo e três estreitos: «Coronel! Coronel?». Por fim, um monóculo a faiscar ao Sol agora todo descoberto: «O nosso Comandante!»

Ora tudo isso, o que ele via e o que ele ia pensando, não demorou mais do que um segundo. E, nesse segundo, o soldado compreendeu que aquele oficial muito alto e magro, sempre sério e de monóculo, que estava quase junto dele, era nem mais nem menos do que o excelentíssimo senhor coronel Rijo, o Comandante do Regimento!

Imediatamente se pusera em sentido. A pomba, assustada com o bater dos calcanhares, afastara-se um pouco. E o último bago de milho, que não deixara cair no chão, não fosse o coronel vê-lo, ficara bem apertado pela mão encostada à perna esquerda. Mas agora, como o Comandante do Regimento tinha chegado ao quartel, era sua obrigação de sentinela dar um grito de alarme: «Às armas!»

Era assim: ele bradava às armas, a guarda vinha logo, a correr, e formava junto da sentinela; o corneteiro tocava, de maneira que, em qualquer parte do quartel, toda a gente ficava sabendo que chegara o Comandante, e por isso devia pôr-se em sentido; e a guarda apresentava armas, o Comandante fazia a continência, e só então entrava.
Ora já ele ia abrindo a boca, pronto a gritar, quando o coronel fez com a mão um gesto muito claro e firme, a dizer-lhe que não, que se mantivesse calado. E ele ficou de boca aberta, atrapalhado, com a pomba, que voltara logo, empoleirada num ombro. Resolveu então fazer o movimento de «apresentar armas»: a espingarda vertical, com a ponta em frente do nariz, segura pela mão direita no punho e pela mão esquerda um pouco mais para acima. Já manejava a arma, quando novamente o Comandante lhe fez um sinal para ficar quieto. Obedeceu, retomando a posição de sentido. E, aproveitando a confusão dos seus próprios gestos, com a boca ainda aberta, para lá atirou o bago de milho.

«Se for preciso, engulo-o...», pensou.

Mas não foi preciso. O Comandante manteve-se por momentos parado diante da sentinela em sentido e com a pomba no ombro esquerdo. Depois disse, em voz baixa:

— Descansar!

O soldado hesitou um pouco... mas, como os comandantes é que mandam, executou o movimento. A pomba, essa, limitou-se a passar para o ombro direito. O coronel olhou-os mais uns segundos. Depois, sem uma palavra, dirigiu-se para a porta do quartel.

Na boca de Ernesto, o bago de milho era agora como um bago de chumbo. Por isso, empurrou-o com a língua, até o entalar entre os dentes. Mas, antes que tivesse tempo de soprá-lo para o chão, a pomba saltou-lhe do ombro e foi comer-lhe, na boca, aquele último bago.

Ora o Comandante, que ia mesmo a entrar, voltou-se nesse instante. E viu, junto da guarita, o soldado em descanso, de cabeça parada, com a pomba a tocar-lhe os lábios com o bico, exactamente como se estivesse a beijá-lo.

Então a sentinela agitou levemente as mãos (seria um gesto de adeus?) e a pomba voou para longe, no momento em que o Comandante entrava finalmente no quartel.

Leonel Neves

Manuela Fonseca e outros (org.)
Lá longe, a paz
Porto, Edições Afrontamento, 2001
Texto retirado com autorização do blogue Caminhos para a paz