O soldadinho, a menina e a pomba - Leonel Neves
O soldado marchava de cá para lá, de lá para cá, na rua sem mais ninguém, diante da porta aberta do quartel. De farda especial e capacete, com a mão direita no punho da espingarda automática encostada ao braço, marchava vinte passos para lá; então parava, batendo com as botas no chão, para fazer meia-volta; e depois marchava vinte passos para cá, para fazer outra meia-volta e continuar a andar os mesmos vinte passos.
Estava de sentinela. De guarda ao quartel, era sua obrigação ver muito bem a entrada e a saída de militares e atender alguma pessoa estranha que por ali aparecesse.
Agora lá andava ele, de um lado para o outro, diante da porta aberta do quartel, onde ninguém entrava e de onde ninguém saía. A rua estava deserta. Nem sequer o Sol, que decerto já tinha nascido, conseguira furar o nevoeiro que toda a noite tinha sido uma manta a embrulhar a cidade. Agora era como um lençol quase transparente, esburacado, mas ainda mal deixava ver muitas casas, algumas árvores e mesmo parte daquela rua.
Ora, a certa altura, o soldado ouviu um leve rumor e viu um pequeno vulto que se aproximava. Logo interrompeu a sua marcha, mesmo junto da guarita, e, com muita atenção, ficou a olhar e foi como se, de repente, a manhã tivesse finalmente começado a descer a larga rua do quartel. Uma menina de bibe branco, boina e sandálias vermelhas, com uma malinha às costas, vinha andando na direcção dele, pulando às vezes, às vezes parando; e, batendo as asas em volta dela, um pombo cinzento rosado, da cor da madrugada, vinha voando com a menina. Mas ela, após três ou quatro passos, parava: e o pombo, então, procurava-lhe as mãos, como se quisesse beijá-las. Assim de longe, lembrava uma borboleta a querer poisar numa flor que tivesse começado a andar.
O soldado estacara junto da guarita, imóvel, em posição de descanso, com as pernas afastadas, as mãos cruzadas à sua frente, a segurar o punho da espingarda automática que parecia agora adormecida ao colo dele.
Com a menina e o pombo já mais perto, percebia melhor o que estava acontecendo. A pequenita trazia nas mãos um cartucho, donde tirava bagos de milho que o pombo lhe ia comendo na palma da mão. E, de súbito, veio correndo até junto do soldado e parou diante dele, com a ave empoleirada num dos ombros. Então disse:
— Bom dia!
Antes de responder, ele descruzou as mãos e ficou com a direita caída a segurar a arma ao longo do braço, e a esquerda muito esticada junto à coxa, ao mesmo tempo que unia os calcanhares, com um grande estalo das botas. Estava em sentido. E ia falar, quando o pombo começou a esvoaçar e a menina a rir.
Devia ter uns sete ou oito anos, muito pequeninos e alegres. Alguns caracóis de cabelo negro escapavam-se da boina vermelha, sobre uns grandes e lindos olhos verdes, num rosto de ar travesso, com um sinalzinho preto à esquerda do nariz arrebitado. E toda ela, desde a boina à boca, ria.
— É por mim que fazes isso? — perguntou, com o pombo empoleirado no outro ombro.
— Uma sentinela deve pôr-se em sentido quando fala com um civil — respondeu o soldado.
— Ai, eu sou um civil — exclamou ela, ainda a rir. — Pois não vês que sou uma menina?
— Bem vejo que é uma menina. Deseja alguma coisa?
— Sim. Quero saber se viste passar o meu avô.
— O seu avô? Não, não vi. Desde que aqui estou, ninguém entrou nem saiu. E há quase meia hora que ninguém passa por esta rua.
— Então, não viste o meu avô? — murmurou a pequenita, muito desgostosa.
E, enquanto tirava do cartucho um bago de milho para o pombo, lamentou-se:
— Sem o meu avô não sei como hei-de resolver o meu problema. Tu é que talvez possas ajudar-me...
— A menina precisa de ajuda?
Ela fez uma careta de impaciência:
— Ai, não faças tanta cerimónia! Porque é que continuas em sentido e a tratar-me por menina? Olha, eu sou a Renata. E esta é a Rita, acrescentou, dando à pomba outro bago de milho. E tu?
— Eu sou o 154.
— O 154? Ora! Trata-me por tu e diz-me o teu nome.
— Ernesto. Na tropa sou o 154, mas chamo-me Ernesto. Mas como é que a menina...
— Como é que tu...
— Está bem! Como é que tu sabes que é uma pomba?
— Como é que eu sei! — exclamou a pequenita, abanando a cabeça. — Sei porque sou muito amiga dela, porque fui eu que lhe pus o nome de Rita, porque é minha vizinha e porque anda a chocar uns ovos que eu quase a vi pôr. E esse é que é o problema!
— Que problema?
Então a Renata explicou qual o problema, acrescentando que era grave. A Rita andava a chocar os seus ovos, em breve ia ser mãe e precisava de comer muito bem, para poder criar uns pombinhos fortes e bonitos como ela. Por isso, todas as manhãs, antes de ir para a escola, costumava dar-lhe milho. Mas naquele dia acordara mais tarde e tinha-se visto obrigada a trazer a pomba com ela, porque a Rita estava habituada a comer bagos, um a um e pouco a pouco, nas mãos da sua amiga Renata. Ora ela tinha de ir já para a escola e só metera por aquela rua para encontrar o avô, que tinha vindo para ali poder dar à pomba o resto do milho...
E, com um ar muito contrariado, concluiu:
— Mas tu dizes que não viste o meu avô... Portanto, como não vejo aqui mais ninguém, só tu é que podes ajudar-me.
— Eu? Tenho muito pena, mas não pode ser. Eu estou de sentinela.
— Já sei! Mas tu mesmo disseste que ninguém tem passado por aqui. Por isso, ninguém pode ver. E eu não conto nada. Olha que já faltam poucos bagos — disse a Renata, dando mais um à pomba que não ficava quieta.
— Tenho muito pena...
— Ernesto, Ernesto! — exclamou a menina, olhando-o com uma expressão muito triste. — Pareces um rapaz muito simpático, mas afinal...
Ele tinha, de facto, um aspecto muito simpático. Baixo, loiro, de olhos azuis, corado e quase imberbe, era naturalmente risonho. Mas agora estava preocupado.
— Não posso, Renata. Se alguém me visse... Se o nosso sargento me apanhasse...
A pomba continuava a bater as asas, à roda do cartucho. A menina, abanando a cabeça, murmurava:
— E eu tenho de ir já para a escola! Tu bem podias, se quisesses... E agora?
Foi então que, vendo que duas lágrimas o espreitavam daqueles grandes e lindos olhos verdes, o soldado não resistiu mais.
— Pronto! Dá cá o milho e vai depressa para a escola. Eu cá trato da Rita... e seja o que Deus quiser!
Como o Ernesto se inclinava para ela, para melhor agarrar o cartucho, a menina pendurou-se-lhe ao pescoço e deu-lhe um grande beijo, dizendo:
— Eu juro que não conto nada a ninguém. Só hei-de dizer ao meu avô que encontrei hoje um soldadinho muito bom e muito bonito. Adeus, amigo Ernesto!
E deixando a pomba a esvoaçar em volta da sentinela, a Renata desatou a correr a caminho da escola, sem olhar para trás, mesmo de costas acenando adeus.
Risonho e pensativo, o soldado ficou a ver a menina desaparecer. Mas a pomba picava-lhe a mão... Despertou e só então desfez a posição de sentido, passando à de descanso: com a espingarda automática ao colo, as pernas afastadas e as mãos à frente, amparando o punho da arma... mas abertas, uma com o cartucho, a outra com a pomba.
Olhou à sua volta: ninguém! Até o nevoeiro parecia voltar de novo, a querer ajudá-lo. E o Ernesto deu à Rita mais um bago de milho.
De repente, vindo do quartel, um som de clarim estilhaçou o silêncio. Estremeceu, mas logo se acalmou, pensando: «É o toque do rancho, para o pequeno-almoço. Agora não é provável que alguém venha à porta.»
Continuou a dar o milho à Rita, contando os bagos que restavam: eram três. Pô-los na concha da mão, deitando fora o cartucho, logo arrastado pelo vento que acordara e desfazia os últimos farrapos de nevoeiro. O sol ia já doirando as coisas. E, quando havia um só bago de milho, o soldadinho, muito distraído, pressentiu de repente alguém que vinha já muito perto dele. Ao perceber quem era, quase desmaiou.
Como estava inclinado para a pomba, ao princípio só viu, pisando o chão, um par de botins ou botas altas. «Oficial ou sargento?» — pensou. Eram botas altas: «Oficial!». Depois, nos ombros, muitos galões amarelos, um largo e três estreitos: «Coronel! Coronel?». Por fim, um monóculo a faiscar ao Sol agora todo descoberto: «O nosso Comandante!»
Ora tudo isso, o que ele via e o que ele ia pensando, não demorou mais do que um segundo. E, nesse segundo, o soldado compreendeu que aquele oficial muito alto e magro, sempre sério e de monóculo, que estava quase junto dele, era nem mais nem menos do que o excelentíssimo senhor coronel Rijo, o Comandante do Regimento!
Imediatamente se pusera em sentido. A pomba, assustada com o bater dos calcanhares, afastara-se um pouco. E o último bago de milho, que não deixara cair no chão, não fosse o coronel vê-lo, ficara bem apertado pela mão encostada à perna esquerda. Mas agora, como o Comandante do Regimento tinha chegado ao quartel, era sua obrigação de sentinela dar um grito de alarme: «Às armas!»
Era assim: ele bradava às armas, a guarda vinha logo, a correr, e formava junto da sentinela; o corneteiro tocava, de maneira que, em qualquer parte do quartel, toda a gente ficava sabendo que chegara o Comandante, e por isso devia pôr-se em sentido; e a guarda apresentava armas, o Comandante fazia a continência, e só então entrava.
Ora já ele ia abrindo a boca, pronto a gritar, quando o coronel fez com a mão um gesto muito claro e firme, a dizer-lhe que não, que se mantivesse calado. E ele ficou de boca aberta, atrapalhado, com a pomba, que voltara logo, empoleirada num ombro. Resolveu então fazer o movimento de «apresentar armas»: a espingarda vertical, com a ponta em frente do nariz, segura pela mão direita no punho e pela mão esquerda um pouco mais para acima. Já manejava a arma, quando novamente o Comandante lhe fez um sinal para ficar quieto. Obedeceu, retomando a posição de sentido. E, aproveitando a confusão dos seus próprios gestos, com a boca ainda aberta, para lá atirou o bago de milho.
«Se for preciso, engulo-o...», pensou.
Mas não foi preciso. O Comandante manteve-se por momentos parado diante da sentinela em sentido e com a pomba no ombro esquerdo. Depois disse, em voz baixa:
— Descansar!
O soldado hesitou um pouco... mas, como os comandantes é que mandam, executou o movimento. A pomba, essa, limitou-se a passar para o ombro direito. O coronel olhou-os mais uns segundos. Depois, sem uma palavra, dirigiu-se para a porta do quartel.
Na boca de Ernesto, o bago de milho era agora como um bago de chumbo. Por isso, empurrou-o com a língua, até o entalar entre os dentes. Mas, antes que tivesse tempo de soprá-lo para o chão, a pomba saltou-lhe do ombro e foi comer-lhe, na boca, aquele último bago.
Ora o Comandante, que ia mesmo a entrar, voltou-se nesse instante. E viu, junto da guarita, o soldado em descanso, de cabeça parada, com a pomba a tocar-lhe os lábios com o bico, exactamente como se estivesse a beijá-lo.
Então a sentinela agitou levemente as mãos (seria um gesto de adeus?) e a pomba voou para longe, no momento em que o Comandante entrava finalmente no quartel.
Leonel Neves
Manuela Fonseca e outros (org.)
Lá longe, a paz