Massacre virtual - João César das Neves
Que pensaria se lhe dissessem que há, entre nós, quem promova cultos pagãos, cheios de magias macabras e sacrifícios humanos? Que acharia se lhe descrevessem essas práticas de violência, ódio e vingança, mergulhadas em esoterismo e mistério? Como reagiria se lhe revelassem que as vítimas são sobretudo crianças e jovens em idade escolar? E se soubesse que o único propósito dessas actividades é encher os bolsos dos seus promotores? O seu repúdio e horror atingiria o máximo quando soubesse que isso se passa em nossas casas, com os nossos filhos. Este é o tema de boa parte dos desenhos animados, dos jogos de vídeo e das canções que fazem as delícias da nossa juventude. Hoje, o assunto das histórias para crianças, seja nos livros, filmes, séries, música rock ou programas de computador, é a bestialidade, o grotesco, a malícia e a superstição. Monstros, vampiros, extra-terrestres, mágicos e demónios são os heróis que os jovens acompanham ou encarnam nas suas aventuras. Poderes sobre-humanos são concedidos por liturgias elaboradas em castelos ou planetas longínquos e postos ao serviço de propósitos imperiais com requintes de violência. Os uivos e combates são envolvidos em místicas exóticas e sofisticadas, com espíritos, fantasmas e poções, num clima de religião bárbara e selvagem.
Nas histórias mais conservadoras, o bem ainda acaba por vencer. Mas as novidades têm como herói o mau, que se alegra com os gemidos das vítimas e os gritos de horror dos inocentes. Nelas, o propósito do jogo é comer mais escravos, atropelar peões, espancar adversários ou arrasar cidades. O realismo do sangue a espirrar e dos estertores da morte só se compara com o maquiavelismo dos planos de zombies, bruxas e dráculas. O diabo, que os pais consideram que não existe, está presente em nome, pessoa e efeitos nas histórias preferidas dos seus filhos.
Tudo isto ultrapassa em muito os filmes de acção e violência, que estão vedados a esse público por serem «interditos a menores de 18 anos». Mas passa aos domingos de manhã nos espaços infantis da televisão ou está acessível a qualquer momento nos livros, revistas, CD de jogos ou músicas satânicas. Os enredos e cultos mirabolantes são o tema de conversa nos recreios das escolas, com os pequenitos a identificarem-se com sádicos e a gabarem-se do número de mortes conseguidas.
É verdade que as histórias para crianças sempre viveram da magia e do sonho. Os tradicionais contos de fadas foram em todas as épocas a apoteose do imaginário. Mas há pouco de semelhante entre os actuais desenhos animados e as histórias da Cinderela, João-sem-medo ou Gato das Botas dos nossos avós, ou até das nossas aventuras do Mickey, Tintim ou Zorro. A brutalidade perversa e a espiritualidade mitológica oferecida aos nossos filhos atinge níveis infra-humanos de miséria intelectual. As pessoas que os concebem, produzem e distribuem são, simplesmente, criminosos de delito comum, que se aproveitam da fraqueza de crianças e dos poderes viciantes da adrenalina para fazer fortuna.
Perante este crime não podemos contar com os poderes públicos. Se se tratasse de fumar em recinto fechado ou sujar monumentos, se fosse excesso de velocidade ou de polinsaturados poderíamos esperar uma acção decidida e empenhada dos ministérios. Como tem a ver com a educação moral das novas gerações, nada mais haverá do que tolerância e princípios retóricos contra a censura. O Governo já mostrou que nos assuntos importantes, como o aborto ou a droga, a sua regra é a balda. Nos EUA ou na Grã-Bretanha há classificações e regulamentações, mas isso é impensável num país avançado e liberal como Portugal.
Também nada podemos esperar das empresas e televisões. Há muito que se remeteram a um limbo de irresponsabilidade e inimputabilidade, por estarem alegadamente ao serviço de valores perenes como a «informação», a «liberdade» e o «público». Sabemos bem que a luta pelas audiências não se compadece com aspectos laterais como a decência, a honra e o carácter.
Que podem os pais e educadores fazer perante esta terrível ameaça que ataca os nossos jovens e crianças? A resposta é difícil e os efeitos serão sempre graves. Mas há alguns princípios elementares que não podem ser esquecidos. Primeiro há que notar que as abordagens mais fáceis são as mais perigosas. Ignorar com indiferença ou proibir com horror é simples e rápido, mas gera as piores consequências. O problema tem de ser enfrentado de forma prudente e dialogante. Aliás, a atracção que estas histórias têm sobre os jovens pode ser uma das grandes oportunidades de educação e crescimento.
Nesse diálogo precioso, o primeiro passo é destruir a imagem, essencial para o seu sucesso, que «não tem mal nenhum», «é só a brincar» e «são jogos como outros quaisquer». É preciso que os jovens percebam que ninguém, por mais forte que seja, pode deixar de sofrer os efeitos de passar horas por dia a participar, mesmo de forma virtual, em torturas, assassínios e espancamentos, seguindo em pormenor liturgias satânicas, cultos misteriosos e adoração de anéis, espadas e cálices.
Esses filmes e jogos devem ser usados também para contrastar com a vida real. O normal é que os jovens que contemplam de forma tão viva horrores tão profundos ganhem uma insensibilidade emocional. Mas também é possível que, por reacção, sejam levados a compreender melhor a beleza, a bondade, a alegria e a felicidade. Cabe aos educadores conduzir e potenciar essa reacção. Estes horrores podem permitir adquirir critérios de julgamento e edificar o carácter, o essencial da educação.
O nosso tempo, que gosta de julgar e condenar, criticou muito as gerações antigas pelos seus métodos educativos. Os compêndios, as reguadas, as aulas magistrais e os castigos foram repelidos como práticas perversas. Mas é difícil imaginar ambiente mais distorcido e desumano como aquele que conseguimos criar para os nossos filhos. As futuras gerações não deixarão de nos julgar por isso.
15 de Janeiro de 2001
João César das Neves
Acordar do Sonho
Lisboa, Ed. Verbo, 2003
Acordar do Sonho
Lisboa, Ed. Verbo, 2003